sexta-feira, 21 de novembro de 2014

A história canina de Alceu

- Fui até o quintal pegar o cão. Os varais estavam cheios de roupas. Aí, o cão me estranhou, me atacou e quase fiquei sem nariz.


         Alceu Belarmino Fernandes quase ficou sem nariz, mesmo. Aponta com o dedo indicador da mão esquerda e diz como conseguiu reparar o grave ferimento.

- Eu cuidava de um mastim napolitano, do dr. Macedo, cirurgião plástico. Fui até a casa dele, na Nova Campinas, para avisar que não poderia pegar o cão naquela manhã. Mostrei o que tinha acontecido. Ele, na hora, disse para eu ir até a clínica, no Cambui, que iria avaliar o meu estado. Fez um curativo e me mandou prá lá.

        Alceu Fernandes caminhou até a clínica. E lembrou que o dr. Macedo exigia que o avisasse pessoalmente quando não pudesse passear com o poderoso mastim. “Não avise por telefone ou por outras pessoas. Venha pessoalmente me avisar”, era o pedido do médico.

       Há 53 anos, Alceu Fernandes trabalha com a educação, adestramento e passeio com cães, em Campinas. Essa história é considerada por ele a mais tensa e insólita na convivência de mais de cinco décadas com os cães das mais variadas raças e dos indefinidos vira-latas.

- Na clínica, ele me examinou e disse: vamos ter de operar isso aí. E assim ele conseguiu reconstituir meu nariz.

       O cão que o atacou pela primeira vez foi um akita. A mordida dilacerou o nariz, que sangrou muito. Anos depois, outro ataque. Um fila cravou os caninos no antebraço esquerdo.

- O fila está ali, quieto. De repente, ataca. Olha a cicatriz.

      É um corte de 10 centímetros. Bem visível, ao puxar a manga da camisa.
Outras pequenas cicatrizes caninas estão distribuídas pelo corpo.

- Foram pequenas mordidas. Nada grave.

           Alceu observa os cães sob as guias, 10 deles, para mantê-los ali, tranquilos.
O tom de voz é calmo. Isso ajuda a entender porque os cães com os quais passeia estão apenas atentos, pacientes na espera do fim da conversa de Alceu com o interlocutor.

      O enredo da paixão pelos cães tem começo. Natural de Pirajuí, município próximo a Bauru, o adestrador não economiza tempo nem o verbo para contar um pouco da própria história. E desenha um sorriso de expectativa sobre a reação dos que o ouvem.

- Cheguei a Campinas em 1960. Tinha trabalhado como garçom em restaurantes de trem. Viajei todo o Estado de São Paulo. Consegui emprego na Bosch. E meu patrão fundou, naquele ano, a Sociedade Campineira de Cães Pastores. O pessoal se reunia na lagoa do Taquaral. Fui lá ver o que faziam. Algum tempo depois, eu estava ajudando o pessoal.

      Foi uma ajuda que se prolongou. Nas décadas de 1980 e 1990, Alceu participava dos encontros da sociedade. Os companheiros dos cães pastores se reuniam em frente à Praça Edmundo Barrato, na Vila Brandina (ali em frente à Feac). Ele acompanhava dois ou três adestradores da Polícia Militar de Campinas, cujos cães pastores eram as estrelas das manhãs domingueiras.

      A fala em volume cortês, pausada e pensada indica o comportamento que dedica aos passeios, aos adestramentos e à educação canina.

      Alceu Fernandes olha para um dos cães, mas sem expressar preocupação. Notou que um deles estava com a pata direita dianteira elevada. Não conseguia pisar. Pegou o cão, um poodle, o carregou no colo com o braço esquerdo, enquanto o direito segurava as guias de outros nove. Caminhou várias quadras.

- Ele deve ter ferido a patinha.

      A cena é guardada por qualquer um que a veja. Ali, o senhor de 75 anos com um cão sob o braço, e na outra mão as guias para a condução da matilha. Gesto delicado entre o homem e o animal.


      No chão, o companheiros não latem, nem grunhem, e aguardam, serenos, sintonizados, o novo comando. 

segunda-feira, 25 de agosto de 2014

Bugigangas

- A gente guarda e acumula cada coisa!

A afirmação parecia servir de justificativa. O amigo Daniel me dava um exemplar de um livro, Enterrem meu coração na curva do rio, obra do escritor e historiador norte-americano Dee  (Dorris Alexander)  Brown, que narra a grandeza e a integridade dos povos indígenas daquele poderoso país. Povos que foram massacrados pelo projeto de colonização ao longo dos séculos XVIII e XIX.  O livro ampliou os sentidos da geração da contracultura na década de 1970, pois arruinou os estereótipos promovidos pelo cinema norte-americano sobre os indígenas. Nos filmes, os índios sempre eram os bandidos. Os soldados da União, heróis.
O presente veio acompanhado de outra explicação:
- Virei minimalista. Agora, só fico com o que é essencial na minha casa. Por isso, estou presenteando meus amigos.
Ao aceitá-lo, levei para casa mais um exemplar de uma obra que ainda não havia lido.
Na semana seguinte, Daniel me presenteava com uma caixa com dois cds. A justificativa era a mesma. O minimalismo como razão para a amizade.
Na caixa, um cd de Frank Zappa, o estonteante Shut Up ‘N Play Yer Guitar,  e outro do politizado The Clash, From Heart to Eternity, pancadaria ao vivo. Bem, não podia haver  presente mais animador naquele fim de noite.
Mas, se tais objetos se revelam importantes em momentos como esses, muito do que guardamos nos vários locais de casa parece se perder com o tempo. São esquecidos na memória do dia a dia. Quando voltamos a nos lembrar dessas coisas, muitas vezes surge aquela palavrinha politicamente incorreta: bugiganga.
E como os objetos declinam. Quando os adquirimos, são valiosos e úteis. Ao tempo, perdem o status e se rebaixam.
Aliás, bugiganga é uma palavra interessante. Os registros etimológicos datam do século XVII. Tem origem espanhola. Bojiganga designava grupos de atores mambembes, farsantes, que se apresentavam em vilarejos de tempo em tempo. Passados alguns séculos, o significado adquiriu outros tons. Hoje, é sinônimo de ninharia, quinquilharia, segundo um dos patrões do nosso vernáculo, o Houaiss.
As bugigangas, assim como os atores, os farsantes, ajudam a entender como nos apegamos a coisas que o tempo demonstra o real valor ou desvalor. E assim, numa sociedade na qual o ato de consumir se eleva quase ao sagrado, possuir coisas molda um solene cenário farsesco. Mercadorias diversas entopem nossos olhos e ouvidos por meio da publicidade, sem que nos atentemos sobre o valor atribuído a elas.
Daniel soube preservar o valor, ao materializar um gesto de amizade nos presentes. Mesmo antigos, para ele, esquecidos em algum lugar, mas lembrados num instante minimalista.
Talvez, esses gestos representem o contraponto ao quanto de mercadoria é empurrado pela propaganda num mundo que se perde em meio a bugigangas. Ou seja, os farsantes são outros, mais especializados e menos ingênuos do que aqueles atores circenses de tempos atrás.  


Publicado na revista Condomínios, edição de agosto de 2014.

segunda-feira, 14 de julho de 2014

Campinas, o visível e o invisível

Você sabe melhor do que ninguém, sábio Kublai (Khan), 
que jamais se deve confundir uma cidade 
com o discurso que a descreve
(As cidades invisíveis, de Ítalo Calvino)

Campinas, visível aniversário. Prestar homenagem aos méritos de Campinas pode virar até clichê, lugar comum. A cidade tem uma história profunda, densa, ampla, universal como nos contos clássicos. É fácil falar sobre as virtudes de um lugar marcado pela presença nativa de inúmeras personalidades. Carlos Gomes, o maestro que rege boa parte dessa história, é protagonista de uma trajetória que hoje abriga escolas de músicas e músicos que honram o autor de O Guarani. 

Por aqui passaram também tantas celebridades. Da arte, da literatura, da ciência, do cinema, enfim, das mais variadas atividades e especialidades humanas que sustentam a civilização. Mas, Campinas tem lados invisíveis aos primeiros olhos. 

Ainda expostas pela história, a escravidão crudelíssima, a peste amarela, o assassinato de um prefeito, caso até hoje obscuro, a expansão a criminalidade, a ambição de incorporadores insensíveis, a permissividade de tantos políticos preocupados com o próprio bolso e sobrevivência eleitoral, a omissão de tantos e tantos. Há muito mais, mais ainda, fatos e episódios visíveis empurrados por tantas mãos ao esquecimento, numa censura perfilada pela relação de poder.

O discurso sobre Campinas parece se padronizar. Como os discursos às vésperas da Copa do Mundo, ocasião em que havia quase unanimidade da mídia em afirmar a vitória da Seleção Brasileira. Do mesmo jeito que vozes isoladas criticavam a escolha de Felipe Scolari para o cargo de técnico da equipe, são falas isoladas que procuram desconstruir o sentimento de ufanismo que brota nesta data.

Campinas é apaixonante. E como paixão, possui dores inenarráveis. Como as dos familiares de tanta gente assassinada em execuções cujos autores raramente são submetidos ao processo judicial. A mesma paixão revela o lado alegre de uma cidade que luta para ser melhor, estar à frente em relação aos índices de desenvolvimento humano, e à fraterna solidariedade. Aqui, são dezenas de instituições generosas que muito fazem para reduzir tanta carência humana. Seja ela espiritual, psicológica, psiquiátrica ou simplesmente saúde.

Campinas é rica. A renda per capita (dados de 2010) é de R$ 33,9 mil. O PIB é de R$ 36,7 bilhões. Maior que o orçamento de diversos Estados brasileiros. Com tais números, o município tem obrigação de registrar baixos índices de de analfabetismo (4,6% em 2009) e expectativa de vida, 76 anos. Invisível, porém, a esses dados monumentais está a injusta distribuição de renda. Basta um olhar mais atento para verificar os lados da cidade. São vários, mas podem ser resumidos. Do mais de um milhão de habitantes, cerca de 160 mil pertencem à classe A, que contrastam com mais de 20 mil famílias na extrema pobreza, segundo dados do Seade, 2012.

Há quem controle tal riqueza, que expressa a concentração de renda no País. Assim, Campinas pode ser rica, reluzente, orgulhosa, mas integra e ajuda a sustentar uma região estigmatizada pelos males típicos e históricos da terra tupiniquim.

Muito se lê sobre o desenvolvimento, o progresso de Campinas. Para uns poucos, isso é sintetizado por um aeroporto que, em razão das políticas sociais combinada com o bom desempenho econômico dos últimos anos, serve, hoje, às várias classes sociais. Era impensável na década de 1990, 1980, testemunhar o tanto de passageiros das classes C e D trafegando pelo honorável Aeroporto de Viracopos. Tráfego maior dos trabalhadores dessas classes sociais ocorre nas ruas e avenidas dos bairros além da Rodovia Anhanguera, num mundo referenciado pela região do Campo Grande. Ali, a vida é outra. Distante do Cambui, Taquaral, Guanabara, Flamboyant, entre outros. Ali, a vida é dura, limitada pelos baixo poder aquisitivo, com o predomínio de famílias esforçadas em conquistar um degrau a mais nas estatísticas sócio-econômicas.

Há, porém, poesia em Campinas. Houve um Guilherme de Almeida. Gestor de versos. Há tantos outros poetas invisíveis, dedicados. Distantes do mundo das celebridades. Pessoas simples. 

Visitar os pontos de encontro em Campinas é quase uma festa. Há gente sempre disposta a uma conversa, um papo enviesado, complexo, cabeça ou mesmo simples, recheado de piadas, de humor. Ou mesmo de tristeza, de acontecimentos doloridos. 

Mas acho que Campinas não é uma poesia. Podem escrever poesias sobre ela. Mas, penso que é mais uma narrativa. De sonhos, pesadelos, fatos e histórias nem tão admiráveis, até terríveis.

Enfim, Campinas faz aniversário. Esse símbolo é a insistente tentativa de humanizarmos tudo aquilo que nos dá um sentido à vida. E damos esse sentido a Campinas.

E aqui, uma narrativa em imagens de Campinas, num texto da Virgginia Laborão, para o G1 EPTV, sobre o projeto intitulado Entre os lapsos do tempo, produzido por Juliano Prado, com fotos (em timelapse) de Ricardo Dettmer. Obrigado Marcela Contrera.

http://g1.globo.com/sp/campinas-regiao/aniversario-de-campinas/2014/noticia/2014/07/video-em-timelapse-registra-cotidiano-de-campinas-em-198-mil-fotografias.html


quarta-feira, 9 de julho de 2014

Sete, o número da vergonha

Sete a um. 


Foi trágico, dolorido. Nem os alemães acreditavam. Depois do quinto gol, parece que diminuíram o ritmo, perplexos com o que faziam. A seleção era um time de várzea, daqueles que vão gradualmente se deparando com a própria incompetência. Jogadores de quilate não se entendiam, diante de um adversário mágico com a bola. O toque eficiente, a triangulação, a marcação impiedosa e um ataque letal envolveram os brasileiros. Colocaram a seleção na roda. Aí, a humilhação. 

Esse cenário, porém, é fruto do que ocorre com o futebol brasileiro. Com os esquemas nem sempre honestos, submetidos a uma CBF marcada pelos interesses paroquiais e personalistas. Não há mais formação de base. Os meninos que começam a apresentar alguma qualidade no futebol logo são transformados em produtos, mercadorias nas mãos de empresários cuja personalidade é profundamente contaminada pela astúcia para ganhar muito dinheiro em pouco tempo. E assim submetem os clubes. 

Talvez o jogo de ontem (08 de julho) tenha exposto dramaticamente a falência de um modelo de futebol que, apesar de rica história, está comprometido com o que de pior há no país. 

Mesmo comandada por dois especialistas, Felipão e Parreira, auxiliados pelo contundente bigode Murtosa, a seleção viu a si mesma pequena, frágil, reduzida a um jogo de bobinhos. Até os alemães se condoeram de nossa indigência no campo. 


Na torcida, o choro de crianças alimentadas pela esperança do melhor futebol do mundo, redundantemente incentivada pelo discurso midiático predominante, hegemônico. É o futebol de nossas dores e de nossas ilusórias alegrias.

E, no campo místico, o brasileiro, de fato, tem fré demais.

sábado, 15 de março de 2014

Crise, ora a crise!

Crise, qual crise? A palavra parece nunca ter tido o sucesso que encontrou nos últimos tempos. Desde a década de 1980, com a queda da bipolaridade entre União Soviética e Aliados ocidentais, com a ascensão do pensamento neoliberal e do prenúncio das crises financeiras globais e a chegada decisiva da tecnologia digital, o mundo passa a se expressar em crise. Na cronologia de uma dramática história que se desenhava na mudança do milênio, o atentado contra as torres gêmeas em Nova Iorque estabeleceu um ponto de inflexão sobre um novo cenário dicotômico, o conflito entre Ocidente e Oriente, entre o mundo cristão civilizado e o mundo muçulmano também civilizado, mas portador de agentes radicais protagonistas do projeto do califado.

A tecnologia digital e a arquitetura de rede determinam um outro mundo, calcado no exponencial armazenamento de informações e documentos diversos, com a disposição para acesso permanente e global. Tudo pode ser lido, visto e ouvido. Tudo pode ser produzido conforme a expressão de cada um, de cada organização, de cada governo. Qualquer sujeito é fonte e audiência; qualquer sujeito informa e argumenta. A horizontalização do mundo congrega perspectivas planas, múltiplas, porém.

Se crise é a palavra que pretende, quando usada, designar a transição dramática entre um mundo e outro, entre um ecossistema e outro, entre uma cultura analógica e a digital, sua aplicação não basta para revelar ou mesmo indicar os tortuosos caminhos propostos desde então.

Robôs, inteligência artificial, manipulação genética, computador quântico, entre outros, são fatos e objetos reais, fruto de um processo científico cuja expansão e densidade ocorrem a partir da pós-modernidade, expressão que pretende designar um período cuja gênese se fixa ao longo do século XIX. É a era das incertezas, das frustrantes dúvidas sobre a incapacidade humana em dar resposta estáveis aos grandes conflitos confeccionados pelos interesses múltiplos de inúmeras sociedades que se tornaram repositórios da exposição subjetiva e não mais objetiva das ações humanas. Agora, é o indivíduo o elemento central de um mundo que ainda não havia entendido adequadamente a objetividade. Ambas, objetividade e subjetividade, se fundem numa única expressão paradoxal, inevitável, delineada pela linguagem e pelo campo da experiência vivenciada pelo sujeito. 

Os grandes modelos ideológicos soçobraram nesse mundo no qual a certeza é superada pela instabilidade permanente dos conflitos. O universo microssocial, das expressões individuais, é projetado pela determinação em enfrentar os sistemas de poder tradicionais.

Não mais um mundo novo; apenas um mundo duvidoso.