domingo, 17 de maio de 2015


De hoje a ontem

Merece atenção a entrevista do sociólogo Francisco de Oliveira, publicada hoje, domingo, 17 de maio, na Folha. O clima negativo que paira sobre a mídia e boa parte da sociedade brasileira é fruto do pathos que toma conta de uma etapa da construção de uma sociedade que quer ser democrática. A crise, porém, é passageira. Há profundas mudanças em curso na forma de vermos o Estado e os governos. Talvez enfrentemos a transição entre um povo cordial (Sérgio Buarque), o cunhadismo (Darcy Ribeiro) e uma nova sociedade amparada no direito isonômico. Apesar de convivermos num sistema ainda bastante hierárquico (Roberto da Matta) e autoritário, moldado ao longo de décadas de privilégios patrimoniais (Raymundo Faoro) de uma elite egoísta (Darcy Ribeiro). 


A mediocridade que predomina entre os governantes atuais pode ser um contraponto para despertar o que é latente na sociedade e que pode transformar o País. Isso não significa que há uma oposição para tanto. Os partidos não estão em crise. Estão falidos e não são mais opções a qualquer projeto transformador. Mesmo o PT, depois das vitoriosas campanhas, se moldou ao principal líder, Lula. E ingressou num estágio de dependência do carisma que, atualmente, sofre com a corrosão e o desgaste de inúmeras denúncias sobre os métodos adotados para governar. Sejam eles o de alianças com os partidos à direita e velhos adversários, sejam os critérios de financiamento do PT e das campanhas eleitorais, hoje, sob denúncias e acusações criminais.

A relação entre os sujeitos e os partidos políticos é dominada pelo oportunismo e pelo desejo da ascensão social. Despreza-se a exceção, pois aqueles que assumem um papel comprometido com a qualidade dos projetos partidários geralmente são minoritários nas deliberações. Os partidos foram transformados em canais de ambições pessoais. O Estado e suas referências são elementos de atração para não apenas a sobrevivência econômica, como também para um projeto de vida e de intimidade com o poder, esse afrodisíaco de que dizia Henry Kissinger. E é o mais forte deles, segundo o secretário norte-americano e um dos maiores estrategistas de política externa na segunda metade do século XX.

As mudanças desejadas, mas ainda muito mais subjetivas do que objetivadas em projetos consistentes, expressam majoritariamente o sentimento de indignação e frustração com os governantes plantonistas ou parlamentares vitalícios. E afloram em discursos agressivos, fragmentados e desconectados de um processo negociado de superação. Ou seja, a própria política como campo da negociação e da busca dos consensos (ver N. Bobbio) é desacreditada como um tipo de comportamento social alternativo à barbárie.

Um diálogo entre épocas


O período ante e pós Independência do Brasil, em 1822, é registrado pelos periódicos da época, grafados em linguagem agressiva e insultuosa, segundo Isabel Lustosa, numa obra imperdível, Insultos Impressos, na qual relata, como historiadora, os conteúdos dos nossos primeiros e rudimentares jornais. Mesmo D. Pedro I publicava artigos num desses periódicos, O Espelho, para atacar, até com palavrões, os adversários. 


Se pudermos traçar uma comparação de épocas, vivemos um período no qual os ataques agressivos e as posições defensivas, atemorizadas pelas denúncias diversas, são registradas no espaço cibernético das redes sociais, sites, blogs etc. A dimensão sensível e emocional que toma conta de tantos discursos e comportamentos nos dias de hoje pode ser conectada com o período da Independência, quando os humores afloraram em perseguições, condenações, exílios, tentativas revolucionárias e assassinatos, além de execuções. Hoje, porém, o avanço do sistema político, desde então, parece ajudar a conter o ânimo para incursões mais graves, pois, os meios para exteriorizar tantas insatisfações são mais eficientes e plurais.

Se naquele periódo, há mais de dois séculos, a imprensa, com a diminuta circulação (a média de tiragem de um semanário no Rio de Janeiro era de 200 exemplares), era o canal pelo qual fluíam as injúrias, também era o meio do registro das primeiras grandes ideias em torno da construção do País. Ou seja, a idiossincrasia dos conteúdos editoriais revelavam o conflito que alimentou decisões de governo somente estabilizadas no período pós-Regência, sob o Império de D. Pedro II. Durou até a República.

Assim, os insultos e as ofensas diversas encontradas nas plataformas digitais são fruto das polemizadas dúvidas que permeiam a esfera da cidadania numa sociedade que se vê, hoje, com mais profundidade e amplitude. E enxerga tantos desmandos, pecados e ilícitos, entre eles a corrupção no mundo governamental e eleitoral, como artifícios de si mesma. Ao se ver nua, talvez possa refletir sobre como romper com tantos abusos.

E a ineficiência administrativa combinada com a corrupção já eram alvos dos críticos da Regência. Hoje, são ainda duas profundas feridas cujos medicamentos experimentados pela sociedade não produziram efeito curativo. É um desafio político de proporções, que exige infinita paciência e vigoroso esforço intelectual. E novas gerações que reúnam a capacidade de ver e construir uma sociedade menos maculada pelas transgressões e pelo egoísmo que permeia o comportamento do político.