- Fui até o quintal pegar o cão. Os varais estavam cheios de
roupas. Aí, o cão me estranhou, me atacou e quase fiquei sem nariz.
Alceu Belarmino Fernandes quase ficou sem nariz, mesmo.
Aponta com o dedo indicador da mão esquerda e diz como conseguiu reparar o
grave ferimento.
- Eu cuidava de um mastim napolitano, do dr. Macedo,
cirurgião plástico. Fui até a casa dele, na Nova Campinas, para avisar que não
poderia pegar o cão naquela manhã. Mostrei o que tinha acontecido. Ele,
na hora, disse para eu ir até a clínica, no Cambui, que iria avaliar o meu
estado. Fez um curativo e me mandou prá lá.
Alceu Fernandes caminhou até a clínica. E lembrou que o dr. Macedo
exigia que o avisasse pessoalmente quando não pudesse passear com o poderoso
mastim. “Não avise por telefone ou por outras pessoas. Venha pessoalmente me
avisar”, era o pedido do médico.
Há 53 anos, Alceu Fernandes trabalha com a educação,
adestramento e passeio com cães, em Campinas. Essa história é considerada por
ele a mais tensa e insólita na convivência de mais de cinco décadas com os cães
das mais variadas raças e dos indefinidos vira-latas.
- Na clínica, ele me examinou e disse: vamos ter de operar
isso aí. E assim ele conseguiu reconstituir meu nariz.
O cão que o atacou pela primeira vez foi um akita. A mordida
dilacerou o nariz, que sangrou muito. Anos depois, outro ataque. Um fila cravou
os caninos no antebraço esquerdo.
- O fila está ali, quieto. De repente, ataca. Olha a
cicatriz.
É um corte de 10 centímetros. Bem visível, ao puxar a
manga da camisa.
Outras pequenas cicatrizes caninas estão distribuídas pelo
corpo.
- Foram pequenas mordidas. Nada grave.
Alceu observa os cães
sob as guias, 10 deles, para mantê-los ali, tranquilos.
O tom de voz é calmo. Isso ajuda a entender porque os cães
com os quais passeia estão apenas atentos, pacientes na espera do fim da
conversa de Alceu com o interlocutor.
O enredo da paixão pelos cães tem começo. Natural de Pirajuí, município próximo a Bauru, o adestrador não economiza tempo nem o verbo para contar um pouco da própria história. E desenha um sorriso de expectativa sobre a reação dos que o ouvem.
- Cheguei a Campinas em 1960. Tinha trabalhado como garçom
em restaurantes de trem. Viajei todo o Estado de São Paulo. Consegui emprego na
Bosch. E meu patrão fundou, naquele ano, a Sociedade Campineira de Cães
Pastores. O pessoal se reunia na lagoa do Taquaral. Fui lá ver o que faziam.
Algum tempo depois, eu estava ajudando o pessoal.
Foi uma ajuda que se prolongou. Nas décadas de 1980 e 1990,
Alceu participava dos encontros da sociedade. Os companheiros dos cães pastores
se reuniam em frente à Praça Edmundo Barrato, na Vila Brandina (ali em frente à
Feac). Ele acompanhava dois ou três adestradores da Polícia Militar de
Campinas, cujos cães pastores eram as estrelas das manhãs domingueiras.
A fala em volume cortês, pausada e pensada indica o
comportamento que dedica aos passeios, aos adestramentos e à educação canina.
Alceu Fernandes olha para um dos cães, mas sem expressar
preocupação. Notou que um deles estava com a pata direita dianteira elevada.
Não conseguia pisar. Pegou o cão, um poodle,
o carregou no colo com o braço esquerdo, enquanto o direito segurava as guias de outros nove. Caminhou várias quadras.
- Ele deve ter ferido a patinha.
A cena é guardada por qualquer um que a veja. Ali, o senhor
de 75 anos com um cão sob o braço, e na outra mão as guias para a condução da matilha. Gesto delicado entre
o homem e o animal.
No chão, o companheiros não latem, nem grunhem, e aguardam, serenos, sintonizados, o novo
comando.