sexta-feira, 13 de julho de 2018

No dia do Rock And Roll

Quando ouvi, pela primeira vez, Whola Lotta Love, percebi que o mundo era muito mais do que eu o experimentava até então. A música, ou o rock and roll, derrubava paredes e abria horizontes indefinidos, mas certos. Era o paradoxo que poucos entendiam. Eu já tinha ouvido Stones e Beatles, Hendrix e Joplin, naquela Santa Bárbara d'Oeste pequena, conservadora, amável, que detestava alguém com cabelos compridos e calças boca de sino. Eu e meu primo, Paulinho, compramos o LP numa tradicional loja de discos na Barão de Jaguara, Campinas. Led Zeppelin II era uma capa incomum. 
Aquele zepelim de chumbo exprimia o paradoxo, a contradição na unidade. Era 1969. Ano terribilis, escaneado pelo regime militar e pela vigilância ideológica orientada por um moralismo tosco. Eu me lembro da perplexidade de muitos em não entender o ritmo marcado pelo riff de uma desarmonia harmônica, na qual Jimmy Page eletrocutava cada nota em dedilhados que só John Bonham conseguia captar na bateria, com o letrado de Robert Plant em agudos imperdoáveis. Plant, um tenor, é um dos maiores intérpretes do rock and roll, indiscutivelmente. Pena ter tido que passar por uma cirurgia que o deixou menos potente na voz, na extensão das notas agudas. 
Mas, Zeppelin viria com outros paradoxos explosivos, com os LPs seguintes. Não havia erro em cada um deles; tudo era meticuloso, peculiar, labiríntico e extasiante. Mais recentemente, fui ver no cinema um grande filme, Millenium - os homens que não amavam as mulheres, de David Fincher. Os créditos iniciais são modulados, desesperadamente, por Immigrant Song, quase um lisérgico hino sobre os martelos dos deuses nórdicos. Zeppelin é a síntese do meu rock and roll, sem desprezar tantos outros grupos geniais que desenharam a minha cabeça (sem qualquer conotação com cabeleireiros).

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terça-feira, 3 de abril de 2018

Eleições com notícias falsas: o desafio e o aprendizado do eleitor sobre as fake news.


As notícias falsas ou fake news encontram-se no centro das pautas jornalísticas e da preocupação do mundo político para enfrentar 2018, ano de eleições. Desde o segundo semestre do ano passado, o tema tomou conta de eventos, páginas de jornais, tempo dos telejornais e dos programas em canais a cabo, debates ou comentários nas emissoras de rádio e também no Congresso Nacional, que promoveu um seminário para abordar o assunto no final de 2017.

O principal desafio nesse cenário, além do descrédito dos possíveis candidatos e dos partidos políticos, é o de enfrentar o tsunami de notícias falsas com barragens legais e medidas técnicas que possam atenuar os efeitos.

Se as notícias falsas constituem as formas gráficas ou imagéticas de informações improcedentes, parcial ou integralmente, outro fator a agravar tais dispositivos simbólicos é a pós-verdade ou o sentimento alimentado pela crença ou ideias pessoais, individuais, com desprezo aos fatos objetivos. A dimensão subjetiva de cada sujeito se torna fonte reprodutora e disseminadora de relatos despregados dos fatos, mas satisfaz os desejos de que sejam “verdadeiros”. Ocorre que, historicamente, os relatos imaginados ou fictícios sempre foram recursos para controle social. Em especial nas mãos dos governantes.

No seminário promovido pelo Conselho de Comunicação Social do Congresso Nacional, em dezembro último, o professor e pesquisador Marcelo Vitorino, ESPM-SP, conceituou as fake news como “artigos fictícios, que misturam acontecimentos ou fatos reais e componentes criados por alguém, com o objetivo de confundir e estimular pessoas a replicarem o conteúdo, para finalidade diversa.” É o ambiente social da mentira utilizada por meio dos recursos digitais e cibernéticos para provocar efeitos diversos pretendidos por alguém.

Cristina Tardáguila, criadora e diretora da Agência Lupa, especializada na checagem de informações e dados, afirmou em evento do TED, realizado em Petrópolis, RJ, em novembro passado, que a mentira é expressão integrante do discurso político. A jornalista coleciona centenas de casos nos quais a afirmação de políticos geraram efeitos negativos no meio social, que recepciona informações sem qualquer filtro crítico ou cuidado em checar a procedência do que foi dito.

Estudos promovidos pelo Grupo de Pesquisa em Políticas Públicas para o Acesso à Informação (Gpopai), da Universidade de São Paulo, divulgados em setembro do ano passado, detectaram que cerca de 12 milhões de pessoas difundem notícias falsas sobre política no Brasil. O grupo de pesquisadores acompanhou 500 páginas digitais durante o mês de junho. Uma das constatações revela que o momento de polarização político-partidária no País coincide com a explosão da criação das notícias falsas. Isso é possível porque, também, os usuários das redes sociais e agregadores de informações ou produzem informações breves e fragmentadas e ou o público recepciona tais mensagens e as compartilham sem qualquer filtro crítico.

Um dos dados registrados nesse estudo feito durante um mês é que quase 15 milhões de notícias falsas foram compartilhadas por pouco mais de três mil usuários, enquanto que pouco mais de três milhões de notícias procedentes ou verdadeiras foram compartilhadas por apenas 577 usuários. Ou seja, as fake news atingiram cinco vezes mais quantidade em relação às notícias verdadeiras. No mundo das plataformas de mídia, das redes e dos algoritmos, tais mensagens também se transformam em elementos econômicos, pois geram riqueza para quem as produzem e disseminam, pois obtêm renda pelo número de acesso e audiência. Ou seja, notícia falsa é mercadoria.

As notícias falsas são relatos que integram o ambiente virtual no qual a pós-verdade é valor do modelo comportamental estruturado na individualidade, na subjetividade como referência de radicalidade a definir a relação do sujeito com o mundo. Mas, são aspectos decorrentes de algo mais antigo, culturalmente entranhado nas relações entre os indivíduos e as comunidades, o boato.

Em meados do século passado, os boatos, também denominados de rumores, começaram a ser sistematicamente estudados no campo da sociologia. Um dos trabalhos que servem de apoio foi produzido pelo sociólogo Tamotsu Shibutani (1920/2004), que publicou em 1966 a obra Improvised News: A Sociological Study of Rumor, que vai influenciar vários pesquisadores posteriormente. Nela, Shibutani, docente na Universidade da California, USA, afirma que os boatos são “notícias improvisadas” que se disseminam em discussões coletivas. Todos os boatos, a rigor, são gerados por acontecimentos ambíguos, mas com relativa importância ou interesse.

Mais tarde, o francês Jean-Noël Kapferer, especialistas em comunicação e marketing pela Escolas de Altos Estudos Comerciais de Paris, publicou um dos trabalhos referenciais sobre o boatos e sobre como eles afetam a imagem das organizações e as marcas comerciais. A obra, Boatos: o mais antigo mídia do mundo, editada em português pela Forense Universitária, em 1993, avança sobre o trabalho de Shibutami, pois Kapferer constata que os boatos nem sempre nascem de acontecimentos, mas muitos deles criam “fatos”. Assim, distingue os boatos nascidos de acontecimentos e aqueles que são criados a partir do imaginário social. Pois, a própria realidade, segundo o pesquisador francês, é plural e resulta de consensos sociais.

As notícias falsas, portanto, formatadas nos ambientes da web, são geradas numa interlocução entre os usuários, os algoritmos, o imaginário e fragmentos das realidades inspiradoras de relatos, sejam eles para o bem ou para o mal. Assim, tanto os criadores das fake news, valorados no ambiente da pós-verdade, como os usuários e o público cometem o que Kapferer denomina de “crença projetiva”, na qual o sujeito nela simula as emoções experimentadas. A expansão das plataformas digitais e a popularização da web contribuem para tornar exponencial a atividade de criação, produção, disseminação, consumo e compartilhamento das mensagens caracterizadas como falsas ou boatos.

Esse é o aparato que deve ser manipulado durante as eleições. Hackers, assessores, candidatos, partidos e outros sujeitos e organizações estão desde já se debruçando sobre o universo da disputa eleitoral para contaminar adversários com informações falsas. Do mesmo jeito, preparam as munições digitais para enaltecer os candidatos, com discursos fantasiosos ou com a tradicional propaganda político-eleitoral.

2018 vai ser um ano no qual o brasileiro será chamado, intensamente, a conviver e a aprender melhor a conhecer e a interpretar os conteúdos digitais e como são aplicados às disputas eleitorais. Será uma oportunidade para melhor compreender e distinguir o que é a ilusão ou o imaginário que atende aos desejos e às simulações emocionais e o que se passa no dia a dia dos fatos políticos e eleitorais. Grande desafio.

Artigo publicado na edição 179, fevereiro/março de 2018, do jornal da Puc Campinas.

terça-feira, 27 de março de 2018

A intolerância entre a ética e a política


O Brasil vive tempos de intolerância. A frase, disseminada em publicações diversas, carrega um juízo sobre o comportamento de muita gente que se manifesta contra tudo aquilo que é estranho ou diferente das experiências durante a vida social. As redes digitais são pródigas em registrar e disseminar agressões fortuitas uns contra os outros. Qualquer motivo insufla a violência verbal, redigida em frases curtas, fragmentadas, na maioria dos casos. Há uma rejeição, até agressiva, injuriosa, da manifestação inaceitável.

Do enfrentamento entre coxinhas e mortadelas, entre conservadores e progressistas, entre petistas e tucanos, entre democratas e nazifascistas, entre a elite governante e os eleitores, entre os fiéis de várias religiões e seitas, o elevado tom da ofensa empacota o julgamento definitivo sobre o outro. Ou melhor, um pré-julgamento.

A velha, e nem sempre compreendida, figura do brasileiro cordial adquire outra perspectiva. Agora, a mais correta. Muitos entendiam esse atributo, cordial, como o sujeito dócil, cortês, afetivo. Nada disso. O autor da ideia, Sérgio Buarque de Holanda, descreve um brasileiro cujo comportamento se centra no afeto, no coração (do latim, cordis), ou seja, no estado emocional. Em oposição ao afeto, o desafeto. O adversário, o inimigo que deve ser tratado pelos impulsos emotivos, pela ira, raiva, ódio.

O predomínio da emoção ou dos afetos reduz a capacidade de pensar sobre o outro. De estabelecer parâmetros da razão como base moral para uma ética da compreensão, do entendimento, da conversação como recurso de negociação entre as ideias opostas. Aí, as paixões podem conviver com a razão e os conflitos serem submetidos ao exame tanto moral como político. Uso aqui o termo político na acepção elevada, como forma de comportamento no qual está presente o interesse coletivo, o interesse público, no exercício da sustentação do estado de direito.

Se considerarmos os dois grandes tipos de comportamentos sociais, o moral e o político, a manifesta intolerância destes tempos estranhos tem por referência os valores morais dicotômicos, o certo e o errado, o bem e o mal, o alto e o baixo, o magro e o gordo, o eu e o outro. Ambos os comportamentos sucumbem à intolerância. Os ataques de grupos político-partidários ou religiosos a segmentos opostos a seus valores (nem sempre conscientes) revelam um desprezo pela convivência, pela ideia de uma sociedade civilizada. E de uma ética situada na aceitação de que somos ambivalentes, de que pecamos e buscamos as virtudes, concomitantemente.

O predomínio das paixões como filtro de leitura das relações sociais deságua na rejeição ao outro, ao estranho, ao diferente. Se tolerar significa entender as razões do outro, tal comportamento depende do intelecto e não das paixões. Assim, há um desprezo evidente no âmbito coletivo e latente no indivíduo pelo diferente quando a paixão e os valores morais enraizados constituem a bússola social. No Brasil, o intelecto é algo estranho como recurso para superação de tantos desafios.

A política sempre foi o campo da negociação, da busca e da manutenção do poder. Este é assimétrico. Quem detém o poder submete aquele que dispõe de um poder inferior ou da sua carência. A modernidade separou a moral da política. A moral se abrigou nas relações íntimas, privadas, enquanto que a política ocupou o espaço público. Como, então, conciliar dois tipos de comportamentos os quais tratam de coisas completamente distintas?

A arquitetura da civilização Ocidental, refém da modernidade, se estrutura nesses dois pilares integrados à religião como poder que os centralizava até a Renascença. Somos herdeiros da separação desses três pilares, religião, política e moral, os quais apresentam fraturas nos dias de hoje.

A denominada pós-modernidade empurra a sociedade para um dilema no qual as próprias dúvidas se esmaecem diante de que tudo é possível. O ser humano se vê num cenário do relativismo dos valores que se contrapõem a uma nostalgia do absoluto.

No Brasil, o contexto das relações políticas escancara o descompromisso de inúmeros governantes e autoridades com valores que gradualmente perdem consistência, como a honestidade, lealdade, responsabilidade, entre outros. Talvez, tais valores nunca estiveram enraizados na trama do poder político, dado que ainda somos uma Nação muito jovem historicamente. Aqui, o poder é mais concentrado, dominado por um sistema que é impermeável ao senso republicano e à democracia. Ou seja, um sistema que rejeita o povo, o eleitor, o cidadão. Somos herdeiros de uma sociedade escravocrata, que não conseguiu se afastar definitivamente desse passado. O modelo da casa grande em oposição à senzala permanece nos escaninhos dos costumes e configura uma ética da exclusão social.

O desafio é enfrentar tais cenários na busca de projetos que possam dar conta da trágica desigualdade que sustenta a nossa história. Sem enfrentá-la, a política de nada valerá para a maioria da população, que se verá refém somente dos valores morais como recurso para responder às agruras da vida. Ou seja, num mundo dos afetos, as paixões poderão dar conta da vida. E elas podem ser muito traiçoeiras.

Uma das destacadas demandas da população brasileira nos últimos tempos é pela ética na política. Como fazer convergir a reflexão sobre o certo e o errado na perspectiva da moral dos indivíduos para a negociação de projetos frutos do consenso dos segmentos conflitantes numa sociedade? Para muitos brasileiros, a política é incompreensível, na medida em que se tornou sinônimo de roubalheira, de corrupção, de profunda desigualdade. Ela se tornou filha bastarda do Estado.

E muitos são os políticos que reforçam essa ideia. Agem e discursam como se não fossem políticos e atacam adversários ao acusá-los de agir como políticos. Trágica contradição, permeada pela ignorância sobre o próprio papel como representante do cidadão.

Se a política é o campo do exercício do poder no estado de Direito, a modernidade ensinou que a democracia constitui um regime para conter o excesso e a ilegitimidade do poder. Se traduzirmos tal ideia para o campo moral, significa que as relações entre os indivíduos só são saudáveis eticamente se forem equilibradas, num constante processo respeitoso. Assim, nenhum indivíduo pode usar da própria força ou do arbítrio para submeter o outro à egoísta vontade e ao desejo. Se, no Brasil, quem detém os cordéis da política concentra excesso do poder sem considerar a igualdade entre os indivíduos – inclusive o de participar das decisões do Estado por meio das consultas populares – nega um dos direitos fundamentais da sociedade contemporânea, o da cidadania.

Superar a distância entre moral e política é, talvez, um dos maiores dilemas que a sociedade brasileira tem diante de si e de seu futuro. Para tanto, pensar eticamente a política exige esforço, empenho, dedicação e investimento na capacidade de nos entendermos diferentes.


(Artigo publicado na edição de janeiro de 2018, nº 120, página 24, da revista Ave Maria, publicada pela Editora Ave Maria).

segunda-feira, 26 de março de 2018

Direitos Humanos e Políticas Públicas, dimensões ambivalentes



A ideia se escreve no singular, a realidade é vivida no plural.

Denis Charbit


Direitos Humanos[i] compreendem uma significação política. Tem origem na formulação da tríade da Revolução Francesa, base da história contemporânea que compôs os sentidos modernos para Liberdade, Igualdade e Fraternidade. Desde a Revolução Inglesa (século XVII) e da Independência Norte-Americana (1776), os direitos civis, ou seja, dos cidadãos, foram gradualmente configurados como base da organização dos estados modernos, em oposição à monarquia absolutista, regime no qual a fonte de todo o direito e da moral era o rei ou o clero. Isso quer dizer que todos nós, indistintamente, no mundo herdeiro da Modernidade, sujeitos presentes numa sociedade organizada politicamente, somos cidadãos. Mesmo aqueles renitentes que afirmam “não gostar de política” ou que asseguram ter um comportamento de desprezo a essa esfera da sociedade.

Como todo projeto histórico, os Direitos Humanos são moldados pela experiência política, econômica e cultural e pelas demandas sociais que resultam na renovação ou na reconfiguração das leis. Ao serem criados, os Direitos Humanos passam a amparar o cidadão como fonte legítima da soberania do Estado e não mais a autoridade divina ou de sangue.

Depois da Revolução Francesa, o novo modelo de sociedade política vai se espalhando para outros povos. Até que, em 1948, logo após o fim da Segunda Guerra Mundial, em dezembro de 1948, na criação da Organização das Nações Unidas, os países signatários aprovam, em assembleia, um documento essencial para os novos tempos: a Declaração Universal dos Direitos Humanos. Nela, estão estabelecidos e reconhecidos como válidos, legítimos, os princípios que definem os direitos do homem na contemporaneidade. O Brasil, como signatário, tem a obrigação política e legal de se submeter a esses princípios, mesmo que a nossa realidade diga o contrário[ii].

O Artigo 1º da Declaração define a quem amparam esses princípios:

“Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São dotados de razão e consciência e devem agir em relação uns aos outros com espírito de fraternidade.”

Fraternidade é o valor que orienta o documento, acompanhado da liberdade e da legalidade. Deles deriva a igualdade, a isonomia, formal e material, que deve sustentar a aplicação dos direitos nos países associados à ONU. Para tanto, o direito à liberdade se constitui, também, essencial.

Contudo, aplicar de modo eficiente tais princípios exige mais do que a formalidade legal, ou seja, o texto da lei. Requer vontade política, projetos eficazes e a maturação da consciência social sobre o papel que cada um exerce como cidadão.

A construção da sociedade baseada nos direitos é essencial e intrínseca ao regime democrático, ao modelo republicano. Com todas as dificuldades na montagem desses sistemas políticos, é neles que a cidadania se realiza sustentada pelo princípio de que o Estado é o ente político e jurídico que vem a assegurar os direitos.

Por aqui, o conceito de direitos humanos e de políticas públicas é fruto das profundas mudanças ocorridas desde a ascensão de Getúlio Vargas ao poder da Nação, na década de 1930. Ao reunir os direitos trabalhistas e patronais num sistema jurídico Positivo[iii], Getúlio inaugurou o protagonismo do trabalhador no cenário do Direito no País, na tentativa de equilibrar forças conflituosas em interesses, numa sociedade profundamente desigual.

É a Constituição de 1988, porém, que introduz o princípio que relaciona os direitos humanos e as políticas públicas. Essa combinação estranha ao formalíssimo Direito Positivo brasileiro rende debates e estudos que ainda realçam muito mais o dissenso do que o consenso.

Com a Constituição Federal promulgada em 1988, os direitos humanos e os princípios da Declaração Universal assinada pelos países integrantes da ONU foram recepcionados com o objetivo de dar uma nova cara para a sociedade brasileira. Assim, não apenas o governo foi responsabilizado pela preservação e aplicação dos direitos, mas também a sociedade para assumir o protagonismo em torno do bem estar coletivo e da justiça social[iv]. Ou seja, a igualdade não mais deriva apenas da vontade imposta pelo legislador, pelo juiz, ou pelas autoridades governamentais, de modo geral, ao estabelecer benefícios a um cidadão passivo, receptor apenas daquele direito. A igualdade, agora, é gerada pela iniciativa de grupos civis na busca de projetos para enfrentar grandes problemas vividos pelas minorias, mas desprezados pelo Estado ou pela política tradicional. As políticas públicas, portanto, podem ser criadas, planejadas e aplicadas pela ação da sociedade civil, cuja contribuição ao ato de governar pretende reequilibrar o poder, de modo a reduzir os riscos de atos autoritários ou sem amparo da legitimidade dada pela cidadania.

A aplicação dos direitos humanos combinada com a gestão de políticas públicas implica em reconhecer, primeiramente, a profunda desigualdade e a rica diversidade social, realidades permanentes a ameaçar o equilíbrio político e econômico e que podem gerar a ruptura das relações sociais. Reconhecer as denominadas minorias como segmentos sem privilégios ou sem o amparo do Estado de Direito é passo fundamental para o desenvolvimento que possa integrar e incluir, pois aí se encontra o espírito da fraternidade, mesmo com as diferenças inerentes aos indivíduos, às regionalidades, aos gêneros, às classes sociais.

O desafio desses dois campos, o dos direitos humanos e o das políticas públicas, é que tanto o sistema político e jurídico como a sociedade brasileira ainda não encontraram um denominador. Muitas das iniciativas de organizações civis em desenvolver projetos de políticas públicas se deparam com inúmeras dificuldades, mesmo no campo do Direito, pois este depende de um processo gradual para aperfeiçoar os mecanismos doutrinários e jurisprudenciais a fim de reconhecer e legitimar as ações da sociedade civil.

Artigo publicado na edição de março de 2017 da revista Conectas, editada pelo Sistema Poliedro de Educação.

Referência Bibliográfica

BUCCI, Maria Paula Dallari et alli. Direitos humanos e políticas públicas. São Paulo: Pólis, 2001. (Cadernos Pólis, 2)
DELGADO, Ana Luiza de M. et alii (orgs.) Gestão de políticas públicas de direitos humanos. Brasília: Enap, 2016.
ONU. Declaração Universal dos Direitos Humanos. Assembleia Geral das Nações Unidas, 1948.
PINSKY, Jaime & PINSKY, Carla B. (orgs). A história da Cidadania. São Paulo: Contexto, 2003.
SAHEL, Claude (org.). Tolerância. Porto Alegre: LP &M, 1993.
SILVA, José A. Curso de Direito Constitucional Positivo. 10 ED. São Paulo: Malheiros, 1995.



[i] A raiz da expressão Direitos Humanos está na concepção filosófica e política no Século XVIII sobre a natureza única do homem, cuja natureza é distinta de todas as outras espécies. Ou seja, o homem é dotado de uma identidade única, de direitos inerentes à sua natureza. É uma concepção teórica denominada Jusnaturalismo.
[ii] A relação das normas legais com a realidade social (política, econômica, cultural) é bastante conflituosa. No Brasil, geralmente, as pessoas distinguem de modo quase absoluto a ideia de lei em confronto com os fatos cotidianos. Popularizamos a expressão: “a lei, ora a lei”, num desprezo pelo mundo jurídico ou dos direitos. Isso ocorre por desconhecimento. A norma, seja ela legal ou moral, diz como as coisas devem ser e não como são. A lei, portanto, é fruto de projetos intencionais, de deveres, que disseminam ideais para atender demandas da sociedade. Se fosse o contrário, a lei seria apenas um reflexo da realidade. Poderíamos, então, dispor de leis que validassem, p. ex., a corrupção.
[iii] O termo Positivo é de origem romana, latina. Significa autoridade; no Brasil, o Direito é herdeiro do modelo Positivo. Ou seja, as leis devem ser feitas e aplicadas pela autoridade, no caso, o operador do Direito (não confundir com a corrente sociológica Positivista, à qual Getúlio Vargas era também adepto).
[iv] Ver: MAGALHÃES, Juliana N. e LIMA, Eric S. (PPGD/UFRJ), Direitos Humanos e Políticas Públicas: As duas faces de Janus. Acesso em http://www.publicadireito.com.br/artigos/?cod=71a58e8cb75904f2