Os arroubos de Jair Bolsonaro contra o tal sistema político
evidenciam um sujeito deslocado numa trajetória pavimentada no parlamento
durante 28 anos e, desde 2019, na Presidência. O discurso centrado na defesa da
própria família, na proteção desenfreada às traquinagens dos filhos e numa
moral suspeita resulta num conjunto de ideias simpáticas para expressivo
segmento da sociedade. A referência discursiva e comportamental de Bolsonaro é
a moral, a crença pessoal em torno de valores e desvalores num flagrante
conflito com a política.
Explico: o campo moral encontra-se na dimensão individual,
abrigado na subjetividade de cada um, moldado pela experiência singular do
indivíduo. O campo político se manifesta nas relações coletivas, numa dimensão
construída objetivamente, ou seja, pelos acordos negociados para a aplicação de
projetos comuns. Desse modo, são duas dimensões que se entrelaçam, mas que
apresentam atributos próprios. Significa que os valores morais são distintos
dos valores políticos, pois estes centram-se na conquista ou na manutenção do
poder no Estado.
Ao atacar o tal sistema, Bolsonaro rejeita a dimensão
política, na qual ele se encontra e na qual sobreviveu, até com os filhos, nos
últimos anos. Desde que foi compulsoriamente reformado como capitão, a
caminhada é um misto de insultos morais com retórica salvacionista. Conseguiu,
por vários motivos, magnetizar boa parcela do eleitorado com esse comportamento
errático, pois contou com uma equipe eficiente no uso das redes sociais e com a
visão moralista presente em parte da sociedade. Ou seja, de pessoas que
enxergam o mundo apenas pelo filtro moral, sem entender que a política é o
ambiente dos interesses conflitantes negociados de modo a superar possíveis
confrontos violentos.
Ao inventarem a política como um conhecimento sobre a
formação e a sustentação do Estado, os gregos, orgulhosamente, diziam se
diferenciar dos bárbaros, pois esses não dominavam a língua grega, não passavam
de um estrangeiro tosco, animalesco. Assim, pela língua grega formularam a
assembleia, na qual todos os cidadãos poderiam opinar livremente para moldar os
rumos do Estado.
Desde então, passando pelos romanos e por tantas outras
experiências civilizatórias, a política se tornou objeto das ciências humanas
que a descreve como capital simbólico, conforme Pierre Bourdieu. Assim, o ato
ou o comportamento político se revela no discurso que busca racionalizar,
organizar e dar sentido a projetos e planos de interesse coletivo e resultante
de consensos, como alinhava Norberto Bobbio. Ao propor a violência, a
disseminação de armas (sob a justificativa de combater ditaduras) e o confronto
fora do sistema constitucional ou legal, num tom personalista, Bolsonaro
apregoa a tirania.
Vale lembrar Ulysses Guimarães, quando disse que “a saliva é
o lubrificante principal da política”. Para os gregos, a palavra logos
significava tanto a razão, a lógica, como o discurso e a palavra (filologia).
Negar, portanto, a política é negar a razão.