Norberto Bobbio é um dos mais importantes pensadores sobre a política no século XX. Herdeiro de Max Weber, conhecedor das obras marxistas e de outros autores, Bobbio usou dos recursos da Filosofia, do Direito e da Ciência Social para narrar os fenômenos conflituosos intrínsecos ao universo da política. Apesar de não se considerar um filósofo, graduou-se na Universidade de Turim, Itália, e se especializou na Filosofia do Direito. Autor de uma riquíssima obra literária sobre Direito e Política, Bobbio era um severo e rigoroso crítico do bolchevismo. Conhecia os modelos totalitários e combateu o fascismo na Itália ao se aliar aos grupos liberais e socialistas. Construiu uma trajetória intelectual respeitadíssima e defendeu o modelo democrático como fundamento do Estado, de modo a conjugar as estruturas de mercado, e seu viés político liberal, com a as obrigações sociais num regime centrado nos direitos individuais, mas igualitários. Bobbio constatou que, na prática, a sociedade busca a convergência do socialismo com o individualismo, mas, o desafio seria definir o que deve ser comum e o que deve pertencer ao indivíduo.
No trecho abaixo, extraído da obra As Ideologias e o Poder em Crise (Editora UNB/Polis, 1988), Bobbio analisa o uso da violência como ferramental para a conquista do Estado como para a manutenção do poder governamental. A reflexão é bastante apropriada para o atual momento enfrentado pelos brasileiros:
"Que os grupos revolucionários justifiquem a própria violência considerando-a como uma resposta, a única resposta possível, à violência do Estado é mais que natural. Todo aquele que pôde refletir sobre a contínua presença da violência na história, não obstante a milenar e natural condenação de todas as religiões e de todas as éticas, sabe que o modo mais comum de justificar a própria violência é afirmar que ela é uma resposta, a única resposta possível em dadas circunstâncias, à violência alheia. E daí a máxima que vale em todos os ordenamentos, mesmo nos menos dispostos a tolerar a violência: vim vi repellere licet" ( é lícito repelir a força com a força).
A reflexão acima evidencia os históricos conflitos entre correntes sediciosas e governantes, nas mais diversas épocas e regiões. A violência, nesse caso, sempre foi a razão motivadora da ação para enfrentar o Estado ou para o Estado enfrentar a oposição que o ameaça.
"De resto, este mesmo argumento é usado pelo Estado para justificar o uso da própria violência, da chamada violência institucionalizada frente à violência revolucionária. É claro que a justificação da violência pela violência pressupõe que, das duas violências em oposição, uma seja originária e, portanto, injustificada. Não creio ser nada excepcional a observação de que a violência originária e injustificada, entre dois contendentes, é sempre a do outro. Qualquer pessoa que tenha assistido a uma discussão sabe que cada um se defende acusando o outro de ter começado. Como consequência, todo ato de violência é ao mesmo tempo justificado por quem pratica e condenado por quem o sofre."
Assim, o método violento se anula como recurso, mesmo diante da vitória de uma das partes. E a violência não ocorre de modo precipitado; é construída gradualmente na medida em que as partes em oposição acirram e elaboram, num primeiro momento, um discurso agressivo de desqualificação moral e política do adversário. Em seguida, movimentos invadem e disputam espaços e enfrentam os grupos adversários em atos de exacerbada expressão agressiva. Aí são construídos vários níveis de violência, sob a justificativa de que o outro, o adversário, é o fator causal.
No Brasil, o uso da violência evidenciou historicamente o Estado vitorioso em vários conflitos. Desde o período da Independência, quando José Bonifácio ajustou, sob o atento olhar do Imperador D. Pedro I, a repressão aplicada aos movimentos separatistas ou sediciosos, muitos foram sacrificados. Mais tarde, outros exemplos, como o movimento Tenentista, a Intentona Comunista e, também, o movimento que desaguou no golpe militar de 1964, as tentativas da esquerda em usar armas para enfrentar o Estado resultou em tragédias. E os governos brasileiros demonstraram toda a crueldade possível da tortura no combate aos "inimigos internos".
Agora, minoritários segmentos socialistas, de tom revolucionário, denunciam a repressão dos governos ao mesmo tempo em que propagam a derrubada ou a eliminação das correntes liberais ou autoritárias à direita. Esta, em grupos minoritários e inexpressivos, também apela para o uso de armas para combater as outras armas.
Esse cenário é propício para alimentar o ovo da serpente. Mesmo porque, a violência é um recurso de negação da democracia. Seja utilizada pelo lado que for. E a sociedade brasileira dá exemplos periódicos sobre como sempre usou a violência para as mais diferentes situações, desde os conflitos raciais até as disputas sócio-econômicas. É só lembrar que o regime escravocrata foi um dos mais cruéis e longevos na América e dele herdamos a trágica relação entre a elite e as classes sócio-econômicas mais frágeis.
Para conhecer o pensamento e a produção intelectual de N. Bobbio, uma sugestão:
BOBBIO, N. Teoria Geral da Política - a Filosofia Política e as Lições dos Clássicos (organizado por M. Bovero). Rio de Janeiro: Campus, 2000.