terça-feira, 27 de março de 2018

A intolerância entre a ética e a política


O Brasil vive tempos de intolerância. A frase, disseminada em publicações diversas, carrega um juízo sobre o comportamento de muita gente que se manifesta contra tudo aquilo que é estranho ou diferente das experiências durante a vida social. As redes digitais são pródigas em registrar e disseminar agressões fortuitas uns contra os outros. Qualquer motivo insufla a violência verbal, redigida em frases curtas, fragmentadas, na maioria dos casos. Há uma rejeição, até agressiva, injuriosa, da manifestação inaceitável.

Do enfrentamento entre coxinhas e mortadelas, entre conservadores e progressistas, entre petistas e tucanos, entre democratas e nazifascistas, entre a elite governante e os eleitores, entre os fiéis de várias religiões e seitas, o elevado tom da ofensa empacota o julgamento definitivo sobre o outro. Ou melhor, um pré-julgamento.

A velha, e nem sempre compreendida, figura do brasileiro cordial adquire outra perspectiva. Agora, a mais correta. Muitos entendiam esse atributo, cordial, como o sujeito dócil, cortês, afetivo. Nada disso. O autor da ideia, Sérgio Buarque de Holanda, descreve um brasileiro cujo comportamento se centra no afeto, no coração (do latim, cordis), ou seja, no estado emocional. Em oposição ao afeto, o desafeto. O adversário, o inimigo que deve ser tratado pelos impulsos emotivos, pela ira, raiva, ódio.

O predomínio da emoção ou dos afetos reduz a capacidade de pensar sobre o outro. De estabelecer parâmetros da razão como base moral para uma ética da compreensão, do entendimento, da conversação como recurso de negociação entre as ideias opostas. Aí, as paixões podem conviver com a razão e os conflitos serem submetidos ao exame tanto moral como político. Uso aqui o termo político na acepção elevada, como forma de comportamento no qual está presente o interesse coletivo, o interesse público, no exercício da sustentação do estado de direito.

Se considerarmos os dois grandes tipos de comportamentos sociais, o moral e o político, a manifesta intolerância destes tempos estranhos tem por referência os valores morais dicotômicos, o certo e o errado, o bem e o mal, o alto e o baixo, o magro e o gordo, o eu e o outro. Ambos os comportamentos sucumbem à intolerância. Os ataques de grupos político-partidários ou religiosos a segmentos opostos a seus valores (nem sempre conscientes) revelam um desprezo pela convivência, pela ideia de uma sociedade civilizada. E de uma ética situada na aceitação de que somos ambivalentes, de que pecamos e buscamos as virtudes, concomitantemente.

O predomínio das paixões como filtro de leitura das relações sociais deságua na rejeição ao outro, ao estranho, ao diferente. Se tolerar significa entender as razões do outro, tal comportamento depende do intelecto e não das paixões. Assim, há um desprezo evidente no âmbito coletivo e latente no indivíduo pelo diferente quando a paixão e os valores morais enraizados constituem a bússola social. No Brasil, o intelecto é algo estranho como recurso para superação de tantos desafios.

A política sempre foi o campo da negociação, da busca e da manutenção do poder. Este é assimétrico. Quem detém o poder submete aquele que dispõe de um poder inferior ou da sua carência. A modernidade separou a moral da política. A moral se abrigou nas relações íntimas, privadas, enquanto que a política ocupou o espaço público. Como, então, conciliar dois tipos de comportamentos os quais tratam de coisas completamente distintas?

A arquitetura da civilização Ocidental, refém da modernidade, se estrutura nesses dois pilares integrados à religião como poder que os centralizava até a Renascença. Somos herdeiros da separação desses três pilares, religião, política e moral, os quais apresentam fraturas nos dias de hoje.

A denominada pós-modernidade empurra a sociedade para um dilema no qual as próprias dúvidas se esmaecem diante de que tudo é possível. O ser humano se vê num cenário do relativismo dos valores que se contrapõem a uma nostalgia do absoluto.

No Brasil, o contexto das relações políticas escancara o descompromisso de inúmeros governantes e autoridades com valores que gradualmente perdem consistência, como a honestidade, lealdade, responsabilidade, entre outros. Talvez, tais valores nunca estiveram enraizados na trama do poder político, dado que ainda somos uma Nação muito jovem historicamente. Aqui, o poder é mais concentrado, dominado por um sistema que é impermeável ao senso republicano e à democracia. Ou seja, um sistema que rejeita o povo, o eleitor, o cidadão. Somos herdeiros de uma sociedade escravocrata, que não conseguiu se afastar definitivamente desse passado. O modelo da casa grande em oposição à senzala permanece nos escaninhos dos costumes e configura uma ética da exclusão social.

O desafio é enfrentar tais cenários na busca de projetos que possam dar conta da trágica desigualdade que sustenta a nossa história. Sem enfrentá-la, a política de nada valerá para a maioria da população, que se verá refém somente dos valores morais como recurso para responder às agruras da vida. Ou seja, num mundo dos afetos, as paixões poderão dar conta da vida. E elas podem ser muito traiçoeiras.

Uma das destacadas demandas da população brasileira nos últimos tempos é pela ética na política. Como fazer convergir a reflexão sobre o certo e o errado na perspectiva da moral dos indivíduos para a negociação de projetos frutos do consenso dos segmentos conflitantes numa sociedade? Para muitos brasileiros, a política é incompreensível, na medida em que se tornou sinônimo de roubalheira, de corrupção, de profunda desigualdade. Ela se tornou filha bastarda do Estado.

E muitos são os políticos que reforçam essa ideia. Agem e discursam como se não fossem políticos e atacam adversários ao acusá-los de agir como políticos. Trágica contradição, permeada pela ignorância sobre o próprio papel como representante do cidadão.

Se a política é o campo do exercício do poder no estado de Direito, a modernidade ensinou que a democracia constitui um regime para conter o excesso e a ilegitimidade do poder. Se traduzirmos tal ideia para o campo moral, significa que as relações entre os indivíduos só são saudáveis eticamente se forem equilibradas, num constante processo respeitoso. Assim, nenhum indivíduo pode usar da própria força ou do arbítrio para submeter o outro à egoísta vontade e ao desejo. Se, no Brasil, quem detém os cordéis da política concentra excesso do poder sem considerar a igualdade entre os indivíduos – inclusive o de participar das decisões do Estado por meio das consultas populares – nega um dos direitos fundamentais da sociedade contemporânea, o da cidadania.

Superar a distância entre moral e política é, talvez, um dos maiores dilemas que a sociedade brasileira tem diante de si e de seu futuro. Para tanto, pensar eticamente a política exige esforço, empenho, dedicação e investimento na capacidade de nos entendermos diferentes.


(Artigo publicado na edição de janeiro de 2018, nº 120, página 24, da revista Ave Maria, publicada pela Editora Ave Maria).

segunda-feira, 26 de março de 2018

Direitos Humanos e Políticas Públicas, dimensões ambivalentes



A ideia se escreve no singular, a realidade é vivida no plural.

Denis Charbit


Direitos Humanos[i] compreendem uma significação política. Tem origem na formulação da tríade da Revolução Francesa, base da história contemporânea que compôs os sentidos modernos para Liberdade, Igualdade e Fraternidade. Desde a Revolução Inglesa (século XVII) e da Independência Norte-Americana (1776), os direitos civis, ou seja, dos cidadãos, foram gradualmente configurados como base da organização dos estados modernos, em oposição à monarquia absolutista, regime no qual a fonte de todo o direito e da moral era o rei ou o clero. Isso quer dizer que todos nós, indistintamente, no mundo herdeiro da Modernidade, sujeitos presentes numa sociedade organizada politicamente, somos cidadãos. Mesmo aqueles renitentes que afirmam “não gostar de política” ou que asseguram ter um comportamento de desprezo a essa esfera da sociedade.

Como todo projeto histórico, os Direitos Humanos são moldados pela experiência política, econômica e cultural e pelas demandas sociais que resultam na renovação ou na reconfiguração das leis. Ao serem criados, os Direitos Humanos passam a amparar o cidadão como fonte legítima da soberania do Estado e não mais a autoridade divina ou de sangue.

Depois da Revolução Francesa, o novo modelo de sociedade política vai se espalhando para outros povos. Até que, em 1948, logo após o fim da Segunda Guerra Mundial, em dezembro de 1948, na criação da Organização das Nações Unidas, os países signatários aprovam, em assembleia, um documento essencial para os novos tempos: a Declaração Universal dos Direitos Humanos. Nela, estão estabelecidos e reconhecidos como válidos, legítimos, os princípios que definem os direitos do homem na contemporaneidade. O Brasil, como signatário, tem a obrigação política e legal de se submeter a esses princípios, mesmo que a nossa realidade diga o contrário[ii].

O Artigo 1º da Declaração define a quem amparam esses princípios:

“Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São dotados de razão e consciência e devem agir em relação uns aos outros com espírito de fraternidade.”

Fraternidade é o valor que orienta o documento, acompanhado da liberdade e da legalidade. Deles deriva a igualdade, a isonomia, formal e material, que deve sustentar a aplicação dos direitos nos países associados à ONU. Para tanto, o direito à liberdade se constitui, também, essencial.

Contudo, aplicar de modo eficiente tais princípios exige mais do que a formalidade legal, ou seja, o texto da lei. Requer vontade política, projetos eficazes e a maturação da consciência social sobre o papel que cada um exerce como cidadão.

A construção da sociedade baseada nos direitos é essencial e intrínseca ao regime democrático, ao modelo republicano. Com todas as dificuldades na montagem desses sistemas políticos, é neles que a cidadania se realiza sustentada pelo princípio de que o Estado é o ente político e jurídico que vem a assegurar os direitos.

Por aqui, o conceito de direitos humanos e de políticas públicas é fruto das profundas mudanças ocorridas desde a ascensão de Getúlio Vargas ao poder da Nação, na década de 1930. Ao reunir os direitos trabalhistas e patronais num sistema jurídico Positivo[iii], Getúlio inaugurou o protagonismo do trabalhador no cenário do Direito no País, na tentativa de equilibrar forças conflituosas em interesses, numa sociedade profundamente desigual.

É a Constituição de 1988, porém, que introduz o princípio que relaciona os direitos humanos e as políticas públicas. Essa combinação estranha ao formalíssimo Direito Positivo brasileiro rende debates e estudos que ainda realçam muito mais o dissenso do que o consenso.

Com a Constituição Federal promulgada em 1988, os direitos humanos e os princípios da Declaração Universal assinada pelos países integrantes da ONU foram recepcionados com o objetivo de dar uma nova cara para a sociedade brasileira. Assim, não apenas o governo foi responsabilizado pela preservação e aplicação dos direitos, mas também a sociedade para assumir o protagonismo em torno do bem estar coletivo e da justiça social[iv]. Ou seja, a igualdade não mais deriva apenas da vontade imposta pelo legislador, pelo juiz, ou pelas autoridades governamentais, de modo geral, ao estabelecer benefícios a um cidadão passivo, receptor apenas daquele direito. A igualdade, agora, é gerada pela iniciativa de grupos civis na busca de projetos para enfrentar grandes problemas vividos pelas minorias, mas desprezados pelo Estado ou pela política tradicional. As políticas públicas, portanto, podem ser criadas, planejadas e aplicadas pela ação da sociedade civil, cuja contribuição ao ato de governar pretende reequilibrar o poder, de modo a reduzir os riscos de atos autoritários ou sem amparo da legitimidade dada pela cidadania.

A aplicação dos direitos humanos combinada com a gestão de políticas públicas implica em reconhecer, primeiramente, a profunda desigualdade e a rica diversidade social, realidades permanentes a ameaçar o equilíbrio político e econômico e que podem gerar a ruptura das relações sociais. Reconhecer as denominadas minorias como segmentos sem privilégios ou sem o amparo do Estado de Direito é passo fundamental para o desenvolvimento que possa integrar e incluir, pois aí se encontra o espírito da fraternidade, mesmo com as diferenças inerentes aos indivíduos, às regionalidades, aos gêneros, às classes sociais.

O desafio desses dois campos, o dos direitos humanos e o das políticas públicas, é que tanto o sistema político e jurídico como a sociedade brasileira ainda não encontraram um denominador. Muitas das iniciativas de organizações civis em desenvolver projetos de políticas públicas se deparam com inúmeras dificuldades, mesmo no campo do Direito, pois este depende de um processo gradual para aperfeiçoar os mecanismos doutrinários e jurisprudenciais a fim de reconhecer e legitimar as ações da sociedade civil.

Artigo publicado na edição de março de 2017 da revista Conectas, editada pelo Sistema Poliedro de Educação.

Referência Bibliográfica

BUCCI, Maria Paula Dallari et alli. Direitos humanos e políticas públicas. São Paulo: Pólis, 2001. (Cadernos Pólis, 2)
DELGADO, Ana Luiza de M. et alii (orgs.) Gestão de políticas públicas de direitos humanos. Brasília: Enap, 2016.
ONU. Declaração Universal dos Direitos Humanos. Assembleia Geral das Nações Unidas, 1948.
PINSKY, Jaime & PINSKY, Carla B. (orgs). A história da Cidadania. São Paulo: Contexto, 2003.
SAHEL, Claude (org.). Tolerância. Porto Alegre: LP &M, 1993.
SILVA, José A. Curso de Direito Constitucional Positivo. 10 ED. São Paulo: Malheiros, 1995.



[i] A raiz da expressão Direitos Humanos está na concepção filosófica e política no Século XVIII sobre a natureza única do homem, cuja natureza é distinta de todas as outras espécies. Ou seja, o homem é dotado de uma identidade única, de direitos inerentes à sua natureza. É uma concepção teórica denominada Jusnaturalismo.
[ii] A relação das normas legais com a realidade social (política, econômica, cultural) é bastante conflituosa. No Brasil, geralmente, as pessoas distinguem de modo quase absoluto a ideia de lei em confronto com os fatos cotidianos. Popularizamos a expressão: “a lei, ora a lei”, num desprezo pelo mundo jurídico ou dos direitos. Isso ocorre por desconhecimento. A norma, seja ela legal ou moral, diz como as coisas devem ser e não como são. A lei, portanto, é fruto de projetos intencionais, de deveres, que disseminam ideais para atender demandas da sociedade. Se fosse o contrário, a lei seria apenas um reflexo da realidade. Poderíamos, então, dispor de leis que validassem, p. ex., a corrupção.
[iii] O termo Positivo é de origem romana, latina. Significa autoridade; no Brasil, o Direito é herdeiro do modelo Positivo. Ou seja, as leis devem ser feitas e aplicadas pela autoridade, no caso, o operador do Direito (não confundir com a corrente sociológica Positivista, à qual Getúlio Vargas era também adepto).
[iv] Ver: MAGALHÃES, Juliana N. e LIMA, Eric S. (PPGD/UFRJ), Direitos Humanos e Políticas Públicas: As duas faces de Janus. Acesso em http://www.publicadireito.com.br/artigos/?cod=71a58e8cb75904f2