O Brasil vive
tempos de intolerância. A frase, disseminada em publicações diversas, carrega
um juízo sobre o comportamento de muita gente que se manifesta contra tudo
aquilo que é estranho ou diferente das experiências durante a vida social. As
redes digitais são pródigas em registrar e disseminar agressões fortuitas uns
contra os outros. Qualquer motivo insufla a violência verbal, redigida em
frases curtas, fragmentadas, na maioria dos casos. Há uma rejeição, até
agressiva, injuriosa, da manifestação inaceitável.
Do
enfrentamento entre coxinhas e mortadelas, entre conservadores e progressistas,
entre petistas e tucanos, entre democratas e nazifascistas, entre a elite
governante e os eleitores, entre os fiéis de várias religiões e seitas, o
elevado tom da ofensa empacota o julgamento definitivo sobre o outro. Ou
melhor, um pré-julgamento.
A velha, e
nem sempre compreendida, figura do brasileiro cordial adquire outra
perspectiva. Agora, a mais correta. Muitos entendiam esse atributo, cordial,
como o sujeito dócil, cortês, afetivo. Nada disso. O autor da ideia, Sérgio
Buarque de Holanda, descreve um brasileiro cujo comportamento se centra no
afeto, no coração (do latim, cordis),
ou seja, no estado emocional. Em oposição ao afeto, o desafeto. O adversário, o
inimigo que deve ser tratado pelos impulsos emotivos, pela ira, raiva, ódio.
O predomínio
da emoção ou dos afetos reduz a capacidade de pensar sobre o outro. De
estabelecer parâmetros da razão como base moral para uma ética da compreensão,
do entendimento, da conversação como recurso de negociação entre as ideias
opostas. Aí, as paixões podem conviver com a razão e os conflitos serem
submetidos ao exame tanto moral como político. Uso aqui o termo político na
acepção elevada, como forma de comportamento no qual está presente o interesse
coletivo, o interesse público, no exercício da sustentação do estado de
direito.
Se
considerarmos os dois grandes tipos de comportamentos sociais, o moral e o
político, a manifesta intolerância destes tempos estranhos tem por referência
os valores morais dicotômicos, o certo e o errado, o bem e o mal, o alto e o
baixo, o magro e o gordo, o eu e o outro. Ambos os comportamentos sucumbem à
intolerância. Os ataques de grupos político-partidários ou religiosos a
segmentos opostos a seus valores (nem sempre conscientes) revelam um desprezo
pela convivência, pela ideia de uma sociedade civilizada. E de uma ética
situada na aceitação de que somos ambivalentes, de que pecamos e buscamos as
virtudes, concomitantemente.
O predomínio
das paixões como filtro de leitura das relações sociais deságua na rejeição ao
outro, ao estranho, ao diferente. Se tolerar significa entender as razões do
outro, tal comportamento depende do intelecto e não das paixões. Assim, há um
desprezo evidente no âmbito coletivo e latente no indivíduo pelo diferente
quando a paixão e os valores morais enraizados constituem a bússola social. No
Brasil, o intelecto é algo estranho como recurso para superação de tantos
desafios.
A política
sempre foi o campo da negociação, da busca e da manutenção do poder. Este é
assimétrico. Quem detém o poder submete aquele que dispõe de um poder inferior
ou da sua carência. A modernidade separou a moral da política. A moral se
abrigou nas relações íntimas, privadas, enquanto que a política ocupou o espaço
público. Como, então, conciliar dois tipos de comportamentos os quais tratam de
coisas completamente distintas?
A arquitetura
da civilização Ocidental, refém da modernidade, se estrutura nesses dois
pilares integrados à religião como poder que os centralizava até a Renascença.
Somos herdeiros da separação desses três pilares, religião, política e moral,
os quais apresentam fraturas nos dias de hoje.
A denominada
pós-modernidade empurra a sociedade para um dilema no qual as próprias dúvidas se
esmaecem diante de que tudo é possível. O ser humano se vê num cenário do
relativismo dos valores que se contrapõem a uma nostalgia do absoluto.
No Brasil, o
contexto das relações políticas escancara o descompromisso de inúmeros
governantes e autoridades com valores que gradualmente perdem consistência,
como a honestidade, lealdade, responsabilidade, entre outros. Talvez, tais
valores nunca estiveram enraizados na trama do poder político, dado que ainda
somos uma Nação muito jovem historicamente. Aqui, o poder é mais concentrado,
dominado por um sistema que é impermeável ao senso republicano e à democracia.
Ou seja, um sistema que rejeita o povo, o eleitor, o cidadão. Somos herdeiros
de uma sociedade escravocrata, que não conseguiu se afastar definitivamente
desse passado. O modelo da casa grande em oposição à senzala permanece nos
escaninhos dos costumes e configura uma ética da exclusão social.
O desafio é
enfrentar tais cenários na busca de projetos que possam dar conta da trágica
desigualdade que sustenta a nossa história. Sem enfrentá-la, a política de nada
valerá para a maioria da população, que se verá refém somente dos valores
morais como recurso para responder às agruras da vida. Ou seja, num mundo dos
afetos, as paixões poderão dar conta da vida. E elas podem ser muito
traiçoeiras.
Uma das
destacadas demandas da população brasileira nos últimos tempos é pela ética na
política. Como fazer convergir a reflexão sobre o certo e o errado na
perspectiva da moral dos indivíduos para a negociação de projetos frutos do
consenso dos segmentos conflitantes numa sociedade? Para muitos brasileiros, a
política é incompreensível, na medida em que se tornou sinônimo de roubalheira,
de corrupção, de profunda desigualdade. Ela se tornou filha bastarda do Estado.
E muitos são
os políticos que reforçam essa ideia. Agem e discursam como se não fossem
políticos e atacam adversários ao acusá-los de agir como políticos. Trágica
contradição, permeada pela ignorância sobre o próprio papel como representante
do cidadão.
Se a política
é o campo do exercício do poder no estado de Direito, a modernidade ensinou que
a democracia constitui um regime para conter o excesso e a ilegitimidade do
poder. Se traduzirmos tal ideia para o campo moral, significa que as relações
entre os indivíduos só são saudáveis eticamente se forem equilibradas, num
constante processo respeitoso. Assim, nenhum indivíduo pode usar da própria
força ou do arbítrio para submeter o outro à egoísta vontade e ao desejo. Se,
no Brasil, quem detém os cordéis da política concentra excesso do poder sem considerar
a igualdade entre os indivíduos – inclusive o de participar das decisões do
Estado por meio das consultas populares – nega um dos direitos fundamentais da
sociedade contemporânea, o da cidadania.
Superar a
distância entre moral e política é, talvez, um dos maiores dilemas que a
sociedade brasileira tem diante de si e de seu futuro. Para tanto, pensar
eticamente a política exige esforço, empenho, dedicação e investimento na
capacidade de nos entendermos diferentes.
(Artigo publicado na edição de janeiro de 2018, nº 120, página 24, da revista Ave Maria, publicada pela Editora Ave Maria).