segunda-feira, 25 de agosto de 2014

Bugigangas

- A gente guarda e acumula cada coisa!

A afirmação parecia servir de justificativa. O amigo Daniel me dava um exemplar de um livro, Enterrem meu coração na curva do rio, obra do escritor e historiador norte-americano Dee  (Dorris Alexander)  Brown, que narra a grandeza e a integridade dos povos indígenas daquele poderoso país. Povos que foram massacrados pelo projeto de colonização ao longo dos séculos XVIII e XIX.  O livro ampliou os sentidos da geração da contracultura na década de 1970, pois arruinou os estereótipos promovidos pelo cinema norte-americano sobre os indígenas. Nos filmes, os índios sempre eram os bandidos. Os soldados da União, heróis.
O presente veio acompanhado de outra explicação:
- Virei minimalista. Agora, só fico com o que é essencial na minha casa. Por isso, estou presenteando meus amigos.
Ao aceitá-lo, levei para casa mais um exemplar de uma obra que ainda não havia lido.
Na semana seguinte, Daniel me presenteava com uma caixa com dois cds. A justificativa era a mesma. O minimalismo como razão para a amizade.
Na caixa, um cd de Frank Zappa, o estonteante Shut Up ‘N Play Yer Guitar,  e outro do politizado The Clash, From Heart to Eternity, pancadaria ao vivo. Bem, não podia haver  presente mais animador naquele fim de noite.
Mas, se tais objetos se revelam importantes em momentos como esses, muito do que guardamos nos vários locais de casa parece se perder com o tempo. São esquecidos na memória do dia a dia. Quando voltamos a nos lembrar dessas coisas, muitas vezes surge aquela palavrinha politicamente incorreta: bugiganga.
E como os objetos declinam. Quando os adquirimos, são valiosos e úteis. Ao tempo, perdem o status e se rebaixam.
Aliás, bugiganga é uma palavra interessante. Os registros etimológicos datam do século XVII. Tem origem espanhola. Bojiganga designava grupos de atores mambembes, farsantes, que se apresentavam em vilarejos de tempo em tempo. Passados alguns séculos, o significado adquiriu outros tons. Hoje, é sinônimo de ninharia, quinquilharia, segundo um dos patrões do nosso vernáculo, o Houaiss.
As bugigangas, assim como os atores, os farsantes, ajudam a entender como nos apegamos a coisas que o tempo demonstra o real valor ou desvalor. E assim, numa sociedade na qual o ato de consumir se eleva quase ao sagrado, possuir coisas molda um solene cenário farsesco. Mercadorias diversas entopem nossos olhos e ouvidos por meio da publicidade, sem que nos atentemos sobre o valor atribuído a elas.
Daniel soube preservar o valor, ao materializar um gesto de amizade nos presentes. Mesmo antigos, para ele, esquecidos em algum lugar, mas lembrados num instante minimalista.
Talvez, esses gestos representem o contraponto ao quanto de mercadoria é empurrado pela propaganda num mundo que se perde em meio a bugigangas. Ou seja, os farsantes são outros, mais especializados e menos ingênuos do que aqueles atores circenses de tempos atrás.  


Publicado na revista Condomínios, edição de agosto de 2014.