Jornal, a fronteira entre o público e o privado

Artigo apresentado no Seminário Nacional "O professor e a leitura do jornal", promovido pela Associação de Leitura do Brasil, em julho de 2006, na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). O artigo foi também publicado no livro "O jornal na vida do professor e no trabalho docente", organizado pelo Prof. Dr. Ezequiel Theodoro da Silva (Editora Global/ALB - 2007).



O JORNAL NA TENSA FRONTEIRA ENTRE O PÚBLICO E O PRIVADO: UM ESTUDO PARA LER CRITICAMENTE OS JORNAIS EM SALA DE AULA
Marcel J. CheidaPuc-Campinas / Faculdades Hoyler
Da Renascença ao início do período Iluminista, a expansão do comércio e a consolidação de uma nova classe social, a burguesia, revelam nas ainda restritas publicações interesses e comportamentos até então mantidos sob o manto das relações pessoais ou familiares. Exemplo desse novo comportamento foi o caso do fim do casamento do escritor inglês John Milton. Abandonado (FORTUNA, 1999) pela esposa Mary Powell, de 17 anos, Milton, de 34 anos, já conhecido em Londres pela produção literária, resolve publicar em 1643 um livro (The doctrine and discipline of divorce) no qual defende o divórcio em casos como o que viveu. Ele argumentou em favor do divórcio quando a mulher abandonar o marido por razões outras que não o adultério. Para o autor, a incompatibilidade de personalidades era o maior empecilho para a continuidade do casamento, que, segundo ele, deveria ser a comunhão de almas. Assim, o divórcio não deveria ser aceito apenas nos casos de adultério, pois aí o casamento seria reduzido à mera reunião de corpos. Milton registra nessa obra um dos primeiros argumentos em defesa do reconhecimento político do direito privado ao casamento e ao divórcio.
A obra de Milton se defrontou com seus adversários políticos e religiosos (Milton era puritano e enfrentou os presbiterianos), entre eles parlamentares ingleses que atacaram as idéias do escritor e passaram a defender a censura aos livros. E foi no Parlamento inglês que o debate se desenrolou e culminou com a exposição do discurso em defesa da liberdade de imprensa.
O abandono do casamento é um fato da vida privada, que ainda se configurava como direito na gênese da sociedade burguesa e liberal. Mas Milton apelou ao espaço público por meio da publicação, por meio da qual chamava a sociedade inglesa para adotar um novo costume e aceitá-lo a partir da experiência enfrentada pelo escritor. Contra a censura, Milton redigiu o discurso que seria lido no Parlamento inglês, Areopagítica, no qual ele formula os fundamentos modernos da liberdade de imprensa.
O mundo privado se torna público. E a demanda do interesse íntimo, conjugal, se projeta no sentido de buscar uma resposta positiva da sociedade inglesa, para se tornar um direito universal. Esta, porém, respondeu politicamente. Os argumentos do escritor não foram suficientes para convencer puritanos e adversários sobre a validade da liberdade de imprimir. A Ordinance, que estabeleceu a censura prévia aos impressos e publicações, entra em vigor a partir de 1643 e só vai ser revogada em 1695, quando o parlamento inglês é reaberto após o período revolucionário.
Se os comerciantes renascentistas produziram as cartas volantes inicialmente numa troca privada para depois torná-las públicas, Milton levou o conflito da vida íntima para o espaço público. De certo modo, os comerciantes e Milton compuseram os elementos originais da formação do universo privado em conflito com o público: os negócios e a vida íntima, conjugal.
A história da construção dos jornais modernos tem início na Renascença, com as cartas volantes trocadas entre comerciantes. Registram-se a partir do século XIII as primeiras cartas manuscritas sobre papel nas quais notícias sobre mercadorias para comercialização eram trocadas entre negociantes. A disseminação dessa prática informativa acompanha o período mercantil, marcado pelas grandes navegações comerciais entre os séculos XV e XVI. Para viabilizar os negócios, a produção manuscrita de cartas resultava em contratos entre as partes, de modo a favorecer a compra e venda de mercadorias. Além disso, o registro comercial impulsiona a contabilidade e a administração de modo a incentivar a confecção do papel. O mundo privado se desenha e estabelece fronteiras tanto para os negócios como para a vida doméstica, familiar, na qual o modelo patriarcal herda os elementos da sociedade despótica greco-romana.
À medida que a expansão da estrutura social burguesa encontra os mecanismos políticos para sua consolidação, os livros e periódicos se tornam extensões dos interesses privados que buscam no espaço público a resposta para a redução de latentes conflitos gerados pela competição dos agentes causais das demandas que adquirem expressão política. Isto é, a manifestação dos interesses privados encontra no espaço público o local onde se manifesta a autoridade política e jurídica com a incumbência e a competência para intervir a fim de construir, mesmo que despoticamente, o consenso.
No século XV, casas especializadas em manuscrever, copiar e difundir cartas comerciais (BRIGGS & BURKE, 2004) são criadas e se tornam organizações empresariais prestadoras de serviços, como a Casa Fugger, na Alemanha. A pedido de comerciantes, os Fugger redigem, copiam e distribuem as cartas aos destinatários. A demanda por maior quantidade de cartas ocorre conforme a expansão dos negócios e a formação dos mercados competitivos. Vendedores precisam alcançar compradores onde estiverem. Gradualmente, as cartas deixam o espaço privado para ser distribuídas em feiras e praças e passam a ser denominadas de cartas volantes.
As obras impressas seguem então um novo caminho. Das cartas comerciais e das missivas amorosas, os livros e periódicos, como outros tipos de impressos, adquirem o atributo da publicidade. Tornam-se públicos. E ajudam a redefinir o espaço social, no qual o mundo privado determina fronteiras para que os agentes públicos nele não ingressem. A publicidade, porém, ocorre com o anonimato. A coercitiva censura sobre as publicações impulsionou a produção de folhetos e panfletos cujos autores se mantinham no anonimato. Paralelamente, as cartas privadas circulavam sob sigilo para evitar a censura e possíveis condenações.
A dicotomia entre o público e o privado vai se definindo conforme a produção simbólica se firma como manifestação e expressão de uma nova ordem social, na qual a intimidade não se circunscreve à vida doméstica, conjugal, mas também aos negócios tratados por meio dos contratos entre as partes, sem a presença do Estado. A autoridade e os agentes públicos devem agir no espaço permitido e não no espaço proibido da intimidade doméstica, privada.
No período iluminista, os periódicos adquirem maior popularidade. As cidades crescem e se tornam áreas de referência para a ampliação do comércio e, também, da troca de informações de caráter político, econômico, religioso e social. Ao longo do século XVII, as fofocas da corte francesa eram temas de pasquins impressos distribuídos clandestinamente. Vassalos e servos da corte testemunhavam os bastidores e a vida sexual nem sempre correta da aristocracia e a narravam para editores de pasquins e de livros. Era comum em Paris a espera da circulação de pasquins e folhetins contendo a descrição do comportamento mundano dos aristocratas. Tais folhetos, manuscritos ou impressos, eram procurados com a ansiedade da novidade, da descoberta de um novo mundo: a privacidade da corte. Além delas, as obras com conteúdos obscenos como “Vênus no claustro”, obra anônima que circulou em 1683 na França (BRIGGS & BURKE).
A expansão da nova economia industrial e capitalista ao final do século XVIII é possível em razão dos novos cenários. A cidade se define como área de concentração dos interesses corporativos e de classe. A competição por mercados se esboça gradual e incisivamente. A revolução francesa, o parlamentarismo constitucional inglês consolidado e a formação dos Estados Unidos ocorrem sob profunda influência do pensamento liberal, que desenha o Estado de Direito responsável pela delimitação legal do espaço e dos interesses públicos e do espaço e dos interesses privados, com leis próprias que procuram distensionar os conflitos entre esses dois campos de ação social.
É nesse cenário que as publicações periódicas, as gazetas, os libelos e os pasquins amplificam o raio de influência social, na formação de um fenômeno típico das sociedades modernas: a opinião pública. Os periódicos se adéquam e ajustam as linhas editoriais de modo a priorizar os assuntos sobre o espaço público. Na transição do jornalismo romântico para o industrial, o idealismo político e social é substituído pela narrativa factual, do cotidiano. Os conteúdos deixam de atender aos requisitos idealistas para abrigar a notícia na forma de relatos descritivos ou narrativos sobre fatos cotidianos.
Propriedade privada - O modelo administrativo-contábil da indústria é aplicado às organizações editoriais que na primeira metade do século XIX iniciam um processo de massificação das folhas periódicas. Proprietários passam a formular projetos e planos de produção noticiosa que buscam, antes de tudo, consolidar um modelo de relação de troca cuja mercadoria é a notícia, seja ela procedente ou não.
A propriedade dos jornais é determinante para a definição de seus conteúdos. Os jornais confeccionados por jornalistas contratados em organizações privadas predominam sobre os que são controlados por organizações estatais ou associações diversas, algumas sem finalidade lucrativa. Ao longo da história dos jornais, no Ocidente, prevaleceu a posse privada, cujos agentes transformaram o ato de imprimir diários, tri-semanários, bi-semanários e semanários em lucrativa atividade que procurou conciliar os interesses particulares com as demandas públicas. Mesmo na Europa, cuja tradição política estimulou a presença dos jornais partidários, a iniciativa privada soube ocupar espaços sociais para explorar a comercialização midiática.
A expansão dos jornais, de certo modo, ocorre com a industrialização, em especial entre os séculos XIX e XX. A formação das modernas sociedades consumistas em regimes liberais, notadamente na Inglaterra e Estados Unidos, contribuiu para acelerar a produção massiva dos jornais impressos. A invenção do telégrafo a cabo, da máquina a vapor e dos processos de impressão baseada na tinta de secagem rápida e no papel em bobina (impressão rotativa) determinaram ao longo do século XIX a expansão do jornal como meio simbólico de intermediação entre o mundo doméstico, individual e o espaço público, coletivo. Agora, o tempo é condensado pela periodicidade diária. A partir da primeira metade do século XIX, as publicações relatam fatos do ontem, parcela de tempo muito próxima, muito presente até se comparado com o distante tempo em que os fatos ocorriam, mas somente eram contados como notícia semanas ou meses depois.
Os jornais são organizações econômicas que manuseiam conteúdos políticos e mercadológicos. No primeiro tipo de conteúdo, se encontram as informações sobre o espaço público, partidos políticos, governos e ações governamentais, eleições e projetos de interesse do Estado, tanto em nível doméstico como externo. No segundo conteúdo, todas as formas de entretenimento, serviços de consumo, publijornalismo etc.
A reunião desses tipos de informações num veículo revela o jornal como organização que sobrevive no tenso limiar entre os interesses públicos e privados. Campo de conflitos permanentes, o jornal deixou de ser o veículo da fiscalização que a sociedade pretendia sobre os governos e governantes para se constituir num potente armamento em defesa de interesses privados. Ou dos interesses ideológicos e partidários , no caso dos Estados socialistas ou autoritários; o que não é o caso brasileiro.
A história da imprensa é mais bem compreendida pelo viés das relações entre o interesse político do exercício do poder no Estado e dos interesses privados gerados pelas demandas particulares expostas a governos e governantes. Desde que Júlio César (69 a.C.) determinou a redação e a publicação das notícias (RIZZINI) sobre o Senado romano em praça pública, a fim de expor senadores por meio de sua rotina e discursos, a informação que circula no meio social se encontra enraizada em intenções personalistas, autoritárias e particulares.
A Renascença é o período em que os interesses privados desenhados na formação da classe burguesa redefinem o conceito de informação, dando a ela um revestimento econômico no tratamento aos negócios entre comerciantes e entre comerciantes, aristocracia e os proto-banqueiros.
As profundas transformações estruturais da sociedade renascentista geram caminhos que vão redefinir o interesse privado em relação ao público. A ascensão burguesa se fundamenta na liberdade individual em pensar e opinar. Milton, no Areopagítica, traduz esse sentimento monumental de liberdade de imprensa, ou de exprimir as opiniões por meio de um suporte inovador, o papel impresso por tipos móveis . O indivíduo moderno começa a ser desenhado e realizado na filosofia liberal, cuja ética reconhece no homem o sujeito capaz de pensar, raciocinar e assumir conscientemente os atos de intervenção no meio político, no espaço público.
Após as profundas rupturas com os regimes monárquicos, o Estado moderno se funda na república e na liberdade dos indivíduos em promover riqueza e ingressar no universo político por meio das eleições. O século XIX é o momento da maior expressão da modernidade que caminha para configurar uma economia capitalista industrial que vai remodelar as relações de produção. Novas fontes de energia como o vapor, a eletricidade e mais tarde o petróleo desenham um novo momento para a civilização ocidental, que encontra no avanço tecnológico respostas inúmeras às novas necessidades. A produção jornalística se reorganiza em fábricas de notícia. As agências noticiosas são inventadas por Charles Havas para comercializar informação de interesse econômico e político. Estão dadas as condições para que os jornais adquiram um novo status, agora baseado na estrutura industrial capitalista.
As agências noticiosas são organizações que se especializaram, desde a origem, em comercializar informações econômicas e políticas com dimensão estratégica para os negócios de destacados banqueiros e comerciantes europeus, os quais dependiam de notícias sobre fatos longínquos, gerados nos conflitos coloniais africanos, índicos, asiáticos ou americanos. Charles Havas funda um modelo de organização empresarial especializada na produção noticiosa destinada a suprir de informações bancos e casas comerciais que dependiam do fornecimento de mercadorias ou matéria prima oriundas de territórios distantes de suas sedes. As agências são modelos de produção noticiosa típicos da iniciativa privada, apesar de, curiosamente, a empresa de Havas ter sido encampada pelo governo francês pós-segunda guerra mundial.
No Brasil, esse modelo chega tardio. Somente em meados do século XX é que os jornais iniciam o processo de modernização industrial. Assim, passam a se tornar empreendimentos privados com um discurso propagandístico cujo argumento é a defesa da verdade ou do interesse público. O apelo à verdade é um recurso retórico pelo qual as empresas jornalísticas procuram se legitimar nas ações políticas e econômicas, sem as quais não sobreviveriam.
Modelos – A posse sobre os jornais é um problema de fundo para a construção de critérios para leitura das notícias. Sem considerar a posse, não é possível compreender a destinação das notícias e das opiniões publicadas. Desse modo, a leitura do relato noticioso produzido por jornais impressos ou eletrônicos é incompleta e até alienante se não for considerada a referência jurídico-contratual que estabelece a posse. É exatamente nessa condição, a propriedade, que muito se esclarece sobre a política e o projeto editorial do jornal. E neles se encontram a materialização dos interesses privados.
Hoje, os jornais podem ser definidos como organizações midiáticas de pequeno, médio ou grande porte econômico, cuja estrutura administrativa e contábil sustenta hierárquica e sistematicamente os processos de produção e comercialização das notícias e opiniões. Ocorre, porém, propriedades distintas da privada. O Estado, associações corporativas e sindicais, organizações não-governamentais e até indivíduos detêm a posse de veículos jornalísticos com os mais variados fins. A posse dos jornais pode ser caracterizada por ser:
1. Privada – organização de propriedade de um ou mais indivíduos, que constitui a empresa jornalística por meio de contrato regulado pelo Direito Civil e Comercial. Os jornais privados formulam nos espaços e tempos (impressos e eletrônicos) conteúdos pelos quais procuram discursar sobre os fatos e idéias cotidianas, de atualidade. Destaco, em especial, os jornais impressos, os quais devem ser distinguidos pela qualidade e abrangência de conteúdos e circulação. Os chamados grandes jornais (os norte-americanos denominam de quality papers) pertencem a organizações que não mais focam os negócios apenas numa publicação. As empresas diversificaram os negócios, e passaram a receber investimentos de outros grupos empresariais que vêem nos jornais uma ferramenta de disseminação de seus interesses, nem sempre revelados adequadamente. Hoje, se consolida a tendência mercadológica de as empresas jornalísticas deterem variados negócios na área midiática, como portais na internet, gráficas, emissoras de televisão em canal aberto ou fechado etc. No Brasil, esse quadro é revelador do processo de concentração midiática já demonstrada em diversos estudos (LIMA, 2001).
2. Estatal – organização de propriedade de uma instituição governamental, pode ser o poder executivo, legislativo ou judiciário, cuja existência é gerada por força de lei. No caso, a publicação jornalística só é possível de ser produzida e circular conforme a lei que a ampara. A agência de notícias Brasil (http://www.agenciabrasil.gov.br/), por exemplo, é órgão mantido pelo governo federal, com o objetivo de produzir e difundir informações na forma noticiosa para os mais diversos veículos de comunicação tanto domésticos como estrangeiros.
3. Partidária – veículo impresso ou eletrônico sob a propriedade de um partido político, regularmente fundado e reconhecido socialmente para representar um segmento ideológico da sociedade organizada politicamente. Na Europa, diversos são os jornais com essas características, como o francês Le Monde (fundado em 1944 com o objetivo editorial focado no Socialismo), ou os italianos L’Unitá (órgão fundado pelo Partido Comunista Italiano). Foi o jornal oficial do partido até 2000, quando foi vendido para novos proprietários) ou L’Osservatore Romano, publicação nascida em 1861, com a finalidade editorial de promover o Estado Pontifício do Vaticano. No Brasil, os grandes partidos produzem não somente jornais impressos como digitais, on line, como o PT, PSDB, PMDB e o PC do B, entre outros..
4. Associativa – a propriedade se caracteriza pela associação de indivíduos e entidades regularmente funcionais que produzem jornais com objetivos específicos em favor da ideologia ou dos interesses sociais prevalecentes. Fundações, sociedades civis beneméritas ou filantrópicas, institutos acadêmicos etc. são organismos que detêm a posse de publicações periódicas com características jornalísticas.
5. Sindical – Os sindicatos são corporações representativas de trabalhadores ou de empresários proprietários. Vários deles publicam periódicos com o intuito de difundir os interesses das categorias e corporações trabalhistas ou capitalistas no exercício da defesa remunerativa ou sócio-trabalhista. São publicações corporativas, fundamentalmente. Exemplo é o Jornal do Sinpro Campinas, que circula (4.000 exemplares) entre os professores sindicalizados na base territorial do sindicato.
6. Pessoal – Mais raro quando impresso, mas hoje bastante disseminados pela tecnologia dos blogs na internet. O jornal pessoal se caracteriza pela completa produção individual de um jornalista que detém não somente a propriedade como se incumbe de todas as tarefas e etapas da produção e circulação. Dois exemplos podem ser citados: o Jornal do Poste (COSTELLA, 2002) e A Cana. O Jornal do Poste foi fundado em 1958 pelo fiscal de Tributos de Minas Gerais, em São João Del Rey, João Lobosque Neto. Era editado em uma folha de papel (23,7 cm por 65,8 cm) e datilografado. A reprodução de cópias em papel carbono e afixados diariamente em postes da cidade. Era lido nas emissoras de rádio da região e até de Belo Horizonte. A Cana (CARNEIRO & KOSSOY, 2003) foi um periódico clandestino. Redigido e editado dentro da prisão pelo militante anarco-sindicalista Rodolpho Felippe, na década de 1930, durante o regime ditatorial de Vargas. Felippe era o redator-chefe do jornal A Plebe, órgão surgido no movimento anarco-sindicalista. Este único exemplar concorreu com outro jornal manuscrito por Felippe, O Xadrez. Os artigos publicados foram considerados “violentos” e atentatórios contra a Segurança Nacional, o que valeu vários processos contra o autor.
Para uma leitura crítica – Ao conhecer um jornal por meio das informações disponíveis, qualquer cidadão pode exercer um papel determinante para contribuir com a democratização e a honestidade das informações. Para o professor que utiliza o jornal em sala de aula, alguns critérios devem ser adotados como referência para uma leitura crítica, reveladora. Isso porque, é possível detectar pelas páginas dos jornais uma série de artifícios ideológicos que contribuem para revelar a posição da empresa jornalística frente aos mais variados problemas sociais como o desempenho individual dos jornalistas na apuração e na redação noticiosa.
A leitura sobre os relatos noticiosos ou opinativos se constitui num ato essencialmente crítico de descoberta sobre os conteúdos factuais ou temáticos presentes na construção do jornalismo e sua relação com o mundo social. A diversidade presente no exercício da produção jornalística contribui para qualquer escola ou professor desenvolver atividades disciplinares ou multidisciplinares de modo a dotar o aluno de um conjunto de informações e elementos simbólicos que o permitam se relacionar com esferas sociais distantes de sua realidade.
Ao ler os jornais impressos, qualquer leitor se depara com um espaço tenso de expressão conflitiva entre os interesses privados e os interesses públicos, relatados por meio de técnicas especializadas. Os conteúdos são tratados conforme o projeto gráfico (estética) e os compromissos éticos que orientam o fazer e a escolha noticiosa. A leitura crítica permite construir revelações sobre o modo como os jornais “observam” e interpretam a realidade cotidiana e discursam sobre ela.
Pequenas e médias empresas jornalísticas costumam publicar “reportagens” sobre negócios e empresas anunciantes em suas páginas. Os textos e imagens são planejados e editados de modo que o conteúdo trate positivamente dos serviços, dos produtos e da organização privada ou estatal sem explorar possíveis conflitos ou versões divergentes sobre o fato. Um dos caros requisitos para o bom jornalismo é o tratamento crítico que deve orientar a apuração dos fatos e temas. Nesses casos, os jornais desprezam o tratamento crítico e divulgam fatos e temas de interesse dos anunciantes na forma de notícia ou reportagem, num evidente desrespeito ao leitor que se habituou à expectativa de ler um texto isento, crítico e revelador.
Se, de fato, os jornais devem ser usados em sala de aula como ferramenta didática de aprendizado, seu conteúdo trata das coisas do mundo social, criado e construído pelos interesses diversos gerados nas esferas privadas e públicas. Assim, o jornal se torna uma ponte entre o aluno, professor e a realidade cotidiana nem sempre acessível em todos os seus aspectos. O jornal serve de intermediador dotado de características ideológicas e valorativas que precisam ser conhecidas para a referência da leitura crítica sobre o modo de fazer o jornal e como esse modo lê a realidade e qual realidade. Mesmo porque, o ato de editar um jornal é uma prática de escolha e seleção sobre o que é relevante ou não para a demanda editorial e mercadológica da empresa de comunicação.
Para contribuir com os critério e métodos de leitura dos jornais impressos, proponho algumas questões que ajudam a orientar o processo de revelação sobre o que são os jornais que enfrentam, de modo geral, uma crise econômico-financeira que resultou na mudança e adequação de suas estruturas às novas realidades mercadológicas. Os jornais deixaram há tempos de ser veículos da idealização e realização de projetos sócio-políticos para se transformar em produtos mercadológicos submetidos às regras da competição do consumo. Assim, redações foram reduzidas a um número mínimo de jornalistas que assumem cada vez mais um número amplo de tarefas que resultam em relatos noticiosos superficiais e sem densidade conteudística. Os grandes jornais (quality papers) procuram sobreviver às intempéries econômicas e mercadológicas de modo a combinar qualidade informativa com escassez de profissionais, ao aplicar o método gerencial predominante na administração empresarial contemporânea, que visa rigorosa e determinantemente a reduzir custos e ampliar os ganhos.
Esse cenário não pode ser desprezado na leitura crítica dos jornais, sob pena de o resultado produzir interpretações desconexas e ilusórias marcadas pela idéia de senso comum de que os jornais publicam “a verdade”, como meios imparciais e isentos no trato dos fatos. Com a reduzida quantidade de jornalistas nas redações e baixos investimentos na estrutura que permite a produção noticiosa, os jornais abrigam jornalistas que dependem fundamentalmente dos press-releases e do telefone como meios de obtenção de informações e dados. Os portais e sites na internet são outras fontes de informação que orientam pautas e relatos noticiosos. Assim, as pautas e os conteúdos publicados em jornais impressos são gerados por razões endógenas, manuseadas por interesses externos à redação. A teoria do jornalismo independente recomenda a produção de pautas e a apuração orientada pelos interesses jornalísticos e pela política editorial dos jornais comprometidos com as demandas públicas e sociais. Quando os jornais preferem os press-releases como pauta ou como notícia a ser publicada faz uma opção pela dependência e não pela autonomia editorial. Assim, os interesses privados ou governamentais ou corporativos passam a orientar a produção editorial, de modo a fazer dos jornais meios de propaganda ou de difusão de conteúdos institucionais acríticos.
Para uma leitura analítica sobre os procedimentos e conteúdos jornalísticos, algumas questões devem orientar o professor em sala de aula, de modo a considera duas condições: a propriedade e sua dimensão institucional e os relatos e sua dimensão técnica, estética e ética:
Na condição institucional, o professor e o aluno devem buscar informações sobre a propriedade e a política editorial que orientam a produção jornalística. Ao conhecer os proprietários, inicia-se o desvendamento de suas ideologias e interesses.
Quanto aos relatos noticiosos ou opinativos, as questões devem ser orientadas pelos seguintes problemas:
a) Quem são as fontes de informação? (oficiais, informais, aleatórias, engajadas). As fontes são reveladoras das escolhas ideológicas feitas pelos jornalistas na apuração das informações. Profissão, status sócio-econômico, titulação acadêmica, cargo público ou privado são referências para melhor entendimento dos conteúdos declarados pelas fontes.
b) Predominam as declarações ou respostas resultantes da provocação crítica do repórter? Cabe ao repórter apurar os fatos e idéias por meio de questões e não simples indagações pessoais, em especial as perguntas fechadas, como “você concorda com isso?”, cuja resposta é sim ou não, sem que haja explicitação das razões que sustentam a afirmação ou a negação. Questões subentendem problemas, os quais abrigam contradições, incoerências, conflitos e divergências. A aplicação de questões permite melhor exploração dos fatos e idéias.
c) O repórter esteve no local e descreve o cenário? A ausência do repórter no cenário da reportagem é uma perda essencial resultante da falta da observação direta. Quando o repórter apura as informações somente por telefone ou e-mail ou fax deixa de proceder com uma das ferramentas essenciais para construir uma descrição ou uma narração baseada na capacidade crítica e sensível que contribuem para a interpretação e solução redacional.
d) O contraditório está presente no relato? A sociedade é conflitiva e o ser humano é rico em contradições. A natureza humana e social se constitui em referência vital para a leitura do cotidiano de qualquer comunidade. Explorar as contradições significa produzir relatos com várias versões, como se recomenda a ética e a teoria noticiosas.
e) O contraditório é modelado pela exclusividade, pela polarização ou pela pluralidade de fontes? A presença de versões distintas e contraditórias revela o esforço da apuração e da investigação do jornalista, de modo a provocar a busca da verdade factual de modo autônomo e independente. Encontrar fontes diversas e qualificadas, com opiniões ricas e pertinentes, e que sejam autoridades no que dizem é parte do esforço da reportagem. Elas dão maior sentido e clareza ao relato jornalístico, desde que bem aproveitadas pelo repórter.
f) O relato revela ou oculta? Denuncia ou esconde? O relato noticioso tem finalidade maior de revelar, de desvendar, de trazer ao leitor a novidade. A notícia ou a reportagem deve esclarecer o fato ou o assunto. Por isso a intenção do jornalista é a de apurar as informações, ouvir as pessoas, questionar e refletir sobre o tema da pauta a fim de oferecer ao leitor um discurso didático que o oriente sobre como conhecer o fato em sua complexidade social. O jornalista tem um compromisso com revelação e não com a ocultação.
A leitura dos jornais impressos é antes de tudo um exercício intelectual. As crianças e jovens submetidos à pratica da leitura de jornais em sala de aula são envolvidas numa teia de aprendizado crítico, por meio do qual vai se construir a capacidade de interpretação e compreensão racional dos problemas e fatos sociais.
O professor adquire, nesse ambiente, uma importância estratégica de estímulo e orientação, a fim de provocar no aluno o senso de observador partícipe de uma realidade que é construída também pela leitura. Assim, os jornais e seus conteúdos contribuem para o aluno e o professor arquitetarem a realidade cuja importância social se manifesta à medida que a notícia pode revelar ou ocultar. E aí se encontra o desafio do aprendizado crítico.

Bibliografia
BOBBIO, N. Estado, Governo e Sociedade: para uma teoria geral da política. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987. 
BRIGGS, A. & BURKE, P. Uma história social da mídia – de Gutenberg à internet. Rio de Janeiro: Zahar Editor.
CARNEIRO, Maria L. T. & KOSSOY, B. (orgs). Imprensa confiscada pelo DEOPS – 1924-1954. São Paulo: Imprensa Oficial, 2003.
COSTELLA, Antonio F. Comunicação: do grito ao satélite. São Paulo: Mantiqueira, 2002.
LIMA, Venício A. de. Mídia – teoria e política. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2001.
LUSTOSA, I. O nascimento da imprensa brasileira.Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003.
MARTINS, Wilson. A palavra escrita – História do livro, da imprensa e da biblioteca. São Paulo: Atlas, 1996.
MILTON, John. Areopagítica: discurso pela liberdade de imprensa ao Parlamento da Inglaterra. Rio de Janeiro: Topbooks. Prefácio: Felippe Fortuna.
RIZZINI, C. O livro, o jornal e a tipografia no Brasil. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo S.A., 1988. 



Para acessar: 
http://alb.com.br/arquivo-morto/anais-jornal/jornal3/textos/009cheida.htm