A Ética na formação do jornalista*

(* Palestra proferida na abertura do 3º Encontro Rio/Espírito Santo de Professores de Jornalismo / outubro de 2007) 

... a maior parte das pessoas ignora que um “trabalho” jornalístico
realmente exige pelo menos tanta “inteligência” quanto qualquer
outro trabalho intelectual e, com freqüência, se esquece tratar-se
de tarefa a executar de imediato e sob comando, tarefa à qual impõe-se
emprestar imediata eficácia, em condições de criação inteiramente
diversas das enfrentadas por outros intelectuais.
Max Weber, in Política como Vocação.

O tema deste encontro é desafiante e inquieta a todos que pretendem compreender a relação e o diálogo necessário entre a sociedade, a academia e a atividade jornalística, seja no âmbito institucional seja no âmbito pessoal. Apesar da proliferação dos discursos e das demandas sobre o comportamento ético no País, o objeto de conhecimento dessa área do saber também sofre a contaminação das relações de poder e da relativização dos valores morais, a ponto de podermos afirmar que há uma alienação da ética. Ao tomarmos apenas a demanda por uma conduta moral desprovida de pertinência com o universo político, a ética jornalística tende a se transformar num mero discurso, nada mais que isso. E a prática profissional se torna cada vez mais submetida aos interesses menores, mesquinhos até, frente aos ideais de um jornalismo comprometido com as transformações da sociedade e a distribuição de informações e opiniões que possam alimentar os processos políticos na grandeza necessária para a construção de um Estado mais justo.
Apesar de a Ética ser uma disciplina disseminada nos currículos de graduação, de modo geral, no de Jornalismo, apresenta um casamento com o Direito ao reunir o conteúdo de legislação da imprensa. Ética e Legislação, portanto, trafegaram e ainda trafegam em uma única via de duas faixas que chegam a confundir alunos e professores quando não há domínio teórico desses dois campos do saber. Na tentativa de reordenar conteúdos, alguns cursos, nos últimos anos, substituíram a Legislação pela Deontologia, numa iniciativa para distanciar o compromisso de uma disciplina como legislação da exigência da formação específica em Direito de quem a ministra. Essa mudança vai ao encontro do fato de que nas escolas de Jornalismo não são os bacharéis em Direito os responsáveis pela disciplina de Legislação da Imprensa ou do Jornalismo. Tal exigência é fundamentada nos requisitos de titulação dos docentes de cada curso. A titulação é determinada pelo tipo de curso, pela especialização prevista no projeto pedagógico. A graduação requer bacharéis em Jornalismo para ministrar aulas de legislação da imprensa ou do jornalismo. E aí encontramos um dos primeiros obstáculos no diálogo entre a formação de jornalistas e o universo do Direito, uma vez que boa parte dos docentes carece de domínio teórico sobre o mundo jurídico. Essa condição, todavia, aparentemente é atenuada pela relativa compreensão dos fundamentos da moral e da deontologia, e suas raízes filosóficas e políticas das quais também deriva o conhecimento jurídico. Mas não é resposta definitiva ao problema pedagógico.
De fato, historicamente os fundamentos da moral se confundem com os do Direito. E se mesclam na formação do Estado moderno, o qual passou a reconhecer o indivíduo como centro da cidadania e o direito como superior ao dever, pelo menos para o cidadão de uma sociedade democrática ou republicana. Cidadão é o sujeito reconhecido moral e politicamente num dado território no qual se forma a sociedade política, o Estado. O conteúdo da disciplina Ética, portanto, dialoga permanentemente com o conteúdo do Direito, pois aí encontramos duas relevantes dimensões intrínsecas do indivíduo: a moral e a política.
É em relação a essas duas dimensões que pretendo refletir sobre a formação do jornalista brasileiro, que freqüenta escolas com características distintas se compararmos a pública, a confessional e a privada. E também se considerarmos a regionalização das atividades pedagógicas e profissionais do jornalismo. Nas peculiaridades regionais nos deparamos com costumes também locais. Encontra-se aí, de imediato, um problema ético de difícil resolução teórica: o conflito entre a universalidade e a relatividade dos valores e costumes morais.
Para tanto, gostaria de propor algumas questões, a começar pelas seguintes, sempre considerando o cenário aqui exposto: quem é o jovem que chega ao primeiro ano ou série da faculdade? Quem são os professores que o recebem, bem como qual é o currículo no qual se encontra uma carga horária definida de Ética, Deontologia e Legislação? E para qual tipo de mídia jornalística esse jovem se destina? A premissa para estas questões é encontrada nas pistas sobre quem somos na sociedade brasileira. E como pensamos e agimos moral e politicamente. Sem considerarmos tais requisitos, creio ser quase impossível buscar respostas às questões de modo conveniente e com um mínimo de rigor crítico.
O jovem que ingressa na faculdade apresenta perfis diferentes, conforme a formação que recebe no ensino fundamental e médio, de sua região. É distinta e clara a capacidade entre aquele que é oriundo da escola pública da periferia de grandes e médias cidades e da mesma escola de localidades interioranas, onde ainda há uma boa formação relativa. E esses alunos possuem habilidades diferentes de muitos que passaram pelas escolas privadas que investem na formação para a disputa no vestibular. Mas mesmo as escolas privadas se diferenciam. Esses são alguns perfis relativos, mas comuns. O conhecimento básico de muitos desses estudantes apresenta fragilidades sintomáticas de como anda o ensino público e o privado. Para a formação de jornalistas, como tantas outras profissões humanísticas, as carências escolares contribuem para retardar e dificultar o aprendizado melhor qualificado no terceiro grau. Há evidente e reconhecida crise no sistema de ensino e nas práticas pedagógicas. Mesmo o universo da pedagogia e da política educacional não consegue apresentar saídas em curto prazo para resolver e estabelecer a integração entre o conhecimento científico e as práticas escolares cotidianas, que refletem profundamente os costumes e um certo desprezo histórico pelo conhecimento científico como recurso para as pessoas poderem conquistar a autonomia intelectual e a independência financeira.
A transição por que passa a sociedade brasileira impede que tenhamos melhor visibilidade sobre o futuro, cuja confusa nuvem o torna opaco pela ausência de um ambicioso projeto político e de consensual convicção sobre o valor da educação como ferramenta de emancipação e transcendência para a efetiva cidadania. Hoje, as referências valorativas da sociedade estão submetidas a profundas transformações típicas de uma época em transição e que enfrenta uma ruptura histórica. Apesar dos redundantes discursos sobre a importância da Educação como projeto estratégico de emancipação social, a realidade cotidiana das escolas desmente a retórica grandiloqüente dos políticos e de muitos proprietários de instituições de ensino. Os valores morais se esvaziam na relação entre as práticas e o discurso. E a volatilidade axiológica provoca interessantes e pretensas respostas a questões de fundo social e político, ético e religioso, econômico e espiritual. Nesse cenário, o jovem e a faculdade enfrentam a elaboração de um roteiro de vida condicionado por alguns fatores que adensam os obstáculos impeditivos da realização de uma escola mais democrática, mais engajada nos processos sociais e na transformação das estruturas político-econômicas:
1.            a burocracia e as exigências normativas do Ministério da Educação. Apesar da necessária burocracia, muitas escolas exageram e criam constrangimentos à autonomia docente, submetendo-a a regras derivadas do da expectativa (nem sempre sincera) em obter resultados positivos nas avaliações institucionais externas,
2.            o determinismo econômico que torna a escola uma loja prestadora de serviço em competição mercadológica com suas concorrentes,
3.            a pressão familiar precoce para que o filho ou filha no final da adolescência já saiba qual profissão seguir,
4.            a pressão da mesma origem para que o estudante (adolescente /jovem) ingresse o quanto antes no mercado de trabalho para ajudar a família ou para se tornar independente no plano econômico,
5.            a cultura imagética que toma conta da sociedade e que constrange a cultura gráfica da leitura.
A esse quadro pode ser acrescentado outro dado que tenho detectado após as reformas recentes geradas pela implantação da LDB no ensino universitário e as variáveis políticas educacionais desde 1996. As escolas confessionais e privadas, por exemplo, implantaram o novo modelo de carreira docente em que se privilegia a titulação para as atividades, ainda restritas, de pesquisa e de extensão. É inegável avanço frente à tradição dos cursos de graduação que sempre privilegiaram a formação técnica, profissional. Nos últimos anos, professores são contratados pelos cursos de Jornalismo desde que comprovem o grau de mestre e doutor. Mas quase todos eles apresentam pobre experiência de mercado. E assumem aulas de ensino sobre a técnica jornalística, que é um meio da realização da reportagem, da edição e a publicação. Então, o tenso e rico ambiente cotidiano das redações deixa de ser referência de fato para ser referência abstrata na sala de aula. Se, nas últimas décadas, a experiência das redações chegou às escolas por meio dos profissionais contratados, mesmo sem títulos acadêmicos, hoje a tendência é outra. Mas permanece a questão de fundo. O ingresso de jovens professores titulados nos cursos vai condicionar um novo perfil de egresso.
O professor Hélio Schuch[1], da Universidade Federal de Sta Catarina, em artigo publicado no site Sala de Prensa, apontou alguns fatores que confirmam a deficiência pedagógica dos cursos de Jornalismo, motivada pelo dilema do perfil docente:
a)      inexatidão quanto aos atributos necessários ao professor de jornalismo, o que pode ser representado pelo seguinte dilema: o correto seria uma formação apenas acadêmica ou uma formação que aglutine experiência profissional no mercado, ou, ainda, somente experiência?;
O professor Schuch constata que a formação do jornalista no terceiro grau não segue os modelos tradicionais de especialização de outras profissões. Entre as razões desse modelo se destaca a formação generalista, diferente das engenharias, do direito, da medicina, entre outras. Disso resultam os currículos diversificados, com conteúdos genéricos. O quadro docente, portanto, tende a refletir a reunião da diversidade das disciplinas com a generalidade dos conteúdos.
Outro fator apontado pelo professor Schuch diz respeito à falta da identidade profissional expressa pela nomenclatura dos cursos de Comunicação Social, os quais privilegiam disciplina periféricas ao aprendizado efetivo do jornalismo:
b)      graduação realizada como habilitação do curso de Comunicação Social, o que significa uma formação não-integral, com escasso tempo para disciplinas focadas na profissão, como também falta de identidade profissional, já que o nome do curso não remete ao jornalismo.
A denominação já provocou intensos debates sobre o perfil acadêmico do curso de Jornalismo, entre os quais destaco o trabalho do professor Adelmo Genro e os argumentos do professor Eduardo Meditsch, da Universidade Federal de Santa Catarina. Ambos formularam rica fundamentação sobre o atributo epistemológico do jornalismo como processo ou modo de conhecimento com particularidades que o distingue do senso comum e da ciência. É nesse ambiente que o jovem professor titulado enfrenta o cotidiano das salas de aula e das demandas daqueles jovens ou adolescentes pressionados pelas famílias e pela sociedade para encontrar “bons empregos”.
Outro problema presente na expansão da oferta de vagas nas escolas privadas resulta do modelo mercadológico que orienta as ações dessas instituições. Nos últimos anos, várias escolas perceberam que precisam investir em marketing para atrair “clientes”, termo este utilizado por muitos gestores das instituições. Ocorre que a competição marqueteira produziu resultados bastante dramáticos. Na região de Campinas, a política de corte de docentes titulados, por motivos econômicos, atingiu vários cursos. A Unimep (Universidade Metodista de Piracicaba/SP), por exemplo, para sobreviver frente à agressiva concorrência das escolas que atraem massivamente alunos com preços ditos competitivos, foi obrigada a dispensar experientes professores de vários cursos, entre eles o de Jornalismo. Por força do positivo movimento de resistência, a Unimep voltou atrás e reconduziu os docentes aos seus postos. Mas isso, é claro, gera um ônus frente à dificuldade econômica, pois o ambiente é bastante intranqüilo. Esse episódio confirma a tendência adotada por muitas instituições privadas que dispensaram professores mais experientes e titulados para substituí-los por inexperientes jovens recém-titulados ou com o grau de especialistas apenas. É o caso da Universidade Paulista, a Unip.
O modelo mercadológico aplicado às instituições de ensino superior condiciona, é claro, as práticas internas, os processos acadêmicos e a relação docente e discente. Ameaçados por instável quadro, os docentes tendem a procurar alternativas à sobrevivência econômica. Uma análise interessante desse comportamento pode ser encontrada em Dupas[2], que revela como o modelo capitalista mercadológico, de resultado imediato, de instabilidade no emprego, afeta o perfil psicológico do trabalhador:
O trabalho remunerado, atividade essencial ao engajamento econômico e social do ser humano na sociedade, está em crise. O capitalismo global contemporâneo trocou lealdade por produtividade imediata e acabou com a época dos relógios de ouro como prêmio por logo tempo de dedicação. Ninguém mais tem emprego de longo prazo garantido na sua atual empresa. As próprias capacidades individuais, adquiridas por estudo ou experiência, sucateiam a cada oito a dez anos. O emprego será cada vez mais voltado para tarefas ou projetos de duração definida.
Se é a escola privada e a confessional que mais egressos formam para o “mercado”, é nelas que encontramos a contaminação da pragmática mercadológica a condicionar a “produção” no ensino e na pesquisa.
Além disso, proliferam as escolas de Jornalismo. Campinas, que até meados da década de 90 tinha um único curso, o da Puc-Campinas, hoje abriga três cursos. E, na região, a menos de 100 quilômetros radiais, pelo menos outros quatro oferecem vagas para uma demanda que não se sustenta. Hoje, segundo dados do Inep, são mais de 400 faculdades de Jornalismo no Brasil, as quais colocam mais de três mil recém-formados no mercado de trabalho, que não os absorve.
No lado de fora da academia, as empresas de comunicação enfrentam e são causa, também, de acirrada concorrência, redução relativa da demanda de público, maior pressão dos anunciantes por preços menores e serviços mais eficientes, desqualificação dos conteúdos editoriais.
Para enfrentar o cenário, pequenas e médias empresas insistem na busca de “estagiários” para reduzir custos, entre outras medidas para assegurar a sobrevivência econômica. E as grandes empresas contratam pessoal sem formação de jornalista, sob a alegação de que qualquer pessoa medianamente informada pode exercer a atividade. Mas muitos jornalistas são formados e se encontram no mercado de trabalho, exercendo variadas funções, entre elas a assessoria de comunicação ou de imprensa, o que para os puristas não se constitui em exercício de jornalismo de fato.
As tecnologias digitais, a internet e os blogs são outros dispositivos que alimentam argumentos em favor do fim do jornalista como profissional, como atividade especializada. Apesar desse bombardeio contra o status profissional do jornalismo, a resistência ocorre intensa e engajada por aqueles que vêem os jornais como artefatos culturais e políticos decisivos e fundamentais para a preservação e o aprofundamento dos ideais democráticos e dos valores humanísticos. Mesmo porque, a natureza histórica dos jornais é estruturada no espaço público, seja ele arena do debate cultural ou do debate político, com todas as variáveis sociais.
O período vivido por nós, porém, apresenta agravantes já descritos por vários pensadores. A frustração do modelo humanístico e racional da modernidade gerou um vazio ocupado pelo que se denomina de pós-modernidade. Esta etapa da história contemporânea em que o sentimento da incerteza se manifestou de modo contundente funda-se na falência dos modelos de sociedade que pretendiam estruturar-se em valores perenes. A rotulada “era da incerteza” é tratada por vários pensadores como período de profundas rupturas e transformações ainda indefinidas, pois percorrem trajetórias inconstantes sob um realçado conflito entre vetores hegemônicos, portanto autoritários, de poder e os discursos em favor da democracia de fato. Há, portanto, um paradoxo: a expansão da informação como fator de estímulo ao conhecimento democratizado encontra o fortalecimento das corporações e de governos que utilizam dos métodos propagandísticos para estabelecer hegemonias e, portanto, um incisivo controle social.
É nesse cenário que o discurso sobre a moral como comportamento social se encontra, aturdido, dissensual e longe de responder os contraditos entre a universalização e a relativização dos valores e as normas morais, bem como entre a ética deontologica e a ética consequencialista, ou teleológica. O Prof. Francisco Karam, (2004), afirma que é preciso expor o profundo abismo entre a Ética (sejam as empresas como a classe dos jornalistas), como campo de conhecimento teórico, as postulações deontológicas das corporações jornalísticas e a práxis cotidiana na qual os preceitos e valores normativos são apenas abstrações frente aos interesses contingenciados pelo economicismo mercadológico. No Brasil, em particular, a ausência do debate iluminista e do enraizamento da escola racionalista, ao longo de sua formação social, ajudam a explicar como a modernidade aqui não se instalou em plenitude; se o século XIX marcou uma tentativa com o movimento republicano, é no século XX que o advento da academia propicia a introdução sistêmica do debate calcado na ciência, apesar dos fortes muros plantados pelo misticismo e pela religiosidade impermeáveis ao pensamento científico e à racionalidade como valor de reflexão ética. A cultura oral e patriarcal construiu uma disseminada crença de senso comum de desconfiança da ciência e da racionalidade, de descrédito sobre a funcionalidade e a contribuição social da pesquisa e do conhecimento científico. Exemplo disso é a expressão de senso comum que afirma: “a teoria, na prática é outra.” A frase é reveladora do abismo entre o conhecimento teórico e a prática cotidiana na qual predomina o senso comum.
Nesse universo, o diálogo entre a academia e o mercado de trabalho é truncado e cheio de suspeições das partes. Se ampliarmos os estudos críticos sobre a deontologia ou a teleologia do exercício profissional rumaremos a um mundo que tende a se distanciar do pragmatismo mercadológico, o qual sempre se orienta por fins que se reduzem ao lucro, ao ganho cada vez maior e à concentração de riqueza. Para quê e para quem, portanto, as escolas formam jornalistas?
Penso que não é possível planejar a formação acadêmica do jornalista sem considerar a relação entre a ética e a reflexão sócio-política, pois aquela se torna alienada ao distanciar-se desta. Se os cursos dispõem de frágeis conteúdos éticos e deontológicos na formação dos estudantes, a interdisciplinaridade com as áreas de formação política é outro grave desafio enfrentado nos currículos. Pois se a produção jornalística é alimentada pelos fatos cotidianos gerados nas relações decorrentes da dinâmica de uma sociedade que se estrutura nos conflitos, a consciência do profissional reclama o suporte do olhar crítico sobre as ações dos grupos de poder. Diariamente, no processo produtivo, o jornalista enfrenta dilemas morais para tratar de problemas políticos que envolvem interesses da empresa, das fontes e do público.
Hoje, o domínio das corporações ou das organizações empresariais no sistema social abriga profissionais e recursos estratégicos de comunicação, ou seja, as fontes altamente especializadas em produzir, difundir e obter resultados positivos na publicação de informações na forma de notícia mas com forte componente ideológico ou propagandístico. As redações se tornaram reféns de assessores da comunicação estratégica ou da comunicação institucional, os quais detêm recursos materiais e ideológicos para influenciar e até determinar a publicação de notícias de interesse privado. E no caso das organizações estatais, notícias de interesse governamental e partidário. No 3º Encontro Paulista de Professores de Jornalismo, sediado em Piracicaba na semana passada (19 e 20/10), o professor Manuel Carlos Chaparro discorreu didaticamente sobre sua tese da revolução das fontes, ocasião em que defendeu a pluralidade das fontes das quais se originam as informações noticiosas. Segundo Chaparro, cuja obra é bastante conhecida no meio acadêmico, as corporações se especializaram no trato da produção informativa para poder conviver num mundo em processo de democratização o qual reclama cada vez mais visibilidade das instituições de poder, sejam elas públicas ou privadas. Ao final da exposição, Chaparro afirmou que as corporações têm de ter voz, sim, para participar do processo democrático.
De fato, as assessorias se transformaram em campo de atuação profissional de jornalistas que nelas fazem carreiras, mas cuja ética se distancia da prática tradicional. O poder das corporações não se direciona apenas às redações, mas privilegiam também as relações públicas com as áreas comercial e administrativa das empresas jornalísticas, numa sucessão de atos estratégicos com o intuito de tornar os jornalistas meios para a difusão de informações que tendem mais à propaganda. Chaparro disse que essas ações fluem sem grandes resistências nas redações, pois nelas há um desprezo pela sistematização de um pensar crítico sobre a realidade. A figura do ombdsman ou de um ouvidor, como atores de análises e provocações críticas, é desprezada por quase todas as empresas jornalísticas, com as exceções conhecidas. A redução do quadro profissional também contribui para a inexistência de jornalistas que se dediquem a analisar e pensar o que é produzido e como é editado.
Chaparro, porém, deixa em aberto o fato de que as corporações dispõem de recursos econômicos e estratégicos para influenciar os conteúdos editoriais dos jornais, mas que no Brasil a maioria dos cidadãos não tem voz nos meios de comunicação. Ou seja, conforme classificação de Weber[3], são organizações que detêm o poder econômico, e concentrado, numa sociedade de profundas e dramáticas diferenças sócio-econômicas. A pluralidade e a democratização são conceitos que no Brasil ainda não se realizaram. As fontes tendem a ser especializadas, portanto são as que submetem as redações a um sistema de fornecimento de informações sistematizadas que facilitam o trabalho do jornalista no sufocante dia a dia. E elas expressam os interesses privados das corporações. Enquanto isso, as parcelas excluídas ou de recorte sócio-econômico com baixo poder aquisitivo são indicadas no noticiário como marginais ou ameaçadoras ao sistema.
O advento da reforma do Código de Ética dos Jornalistas do País não consegue responder de modo prático a essas questões de poder. A validade da inclusão da cláusula de consciência, por exemplo, esbarra no controle hegemônico do sistema administrativo e contábil nas empresas, as quais condicionam a produção noticiosa aos interesses privados de viés econômico. Para tornar uma práxis a cláusula de consciência, o jornalista necessita de uma convicção ético-político, pois seu papel não se restringe a analisar uma determinação hierárquica apenas pelo valor deontológico. Um juízo moral, sobre uma ordem que constrange o profissional e deteriora o conceito de interesse público da notícia, para ser formulado depende das relações entre o papel exercido pelo jornalista e a destinação ou o efeito daquilo que produz para o meio social onde se encontra o público.
Tenho proposto nas avaliações que aplico aos alunos na disciplina de Ética e Legislação tal problema: se eles fossem submetidos a uma ordem hierárquica, no trabalho, para optar entre distorcer a notícia e se negar a cumprir o que é determinado com o risco de perder o emprego, a maioria responde com sinceridade (espontaneamente) que aceitariam acatar a ordem para manter o emprego.
É claro que ao longo do processo de experiência no exercício da profissão pós-faculdade, o egresso pode construir juízos com convicções mais enraizadas nos valores morais e políticos. E dar outra resposta a esse problema. Mas isso depende, como é típico da ação moral, da consciência ética de cada um.
A Ética, portanto, exige um permanente senso crítico aflorado sobre os problemas morais com os quais os jornalistas se defrontam no dia a dia. Mas é fundamental dispor de informações e de conhecimento sobre a moral que permeia o exercício profissional. E isso implica em relacionar as decisões morais com o cenário político no qual se encontra a empresa jornalística, também uma instituição de poder.
Meditsch observa que o jornalismo é um modo de conhecimento que se distingue do senso comum e do senso científico, e aqui relaciono tomo como base a formulação de N. Bobbio sobre a distinção entre moral e política. Do mesmo jeito que o modelo no qual se manifesta o jornalismo como modo de conhecimento, encontro em Bobbio a fronteira que separa a ação moral do jornalista com sua função maior, a de desvendar e estabelecer juízos sobre o espaço público, onde a política se encontra. A moral profissional se circunscreve às ações do indivíduo para com outro ou outros indivíduos na esfera da especialidade, enquanto que a política se manifesta nas ações coletivas. Ora, o jornalismo é o campo em que o profissional se depara com problemas morais no campo profissional (portanto, deontológicos) para exercer uma função que se projeta no espaço público. Este é o campo da política, das ações coletivas, cujos juízos se distinguem dos morais. Bobbio observa que – apesar dos problemas morais ainda insolúveis – o campo da política compreende as razões de estado, as quais não convergem – muito ao contrário – às razões morais. Ora, se o exercício profissional do jornalismo é uma constante abordagem dos fatos ou assuntos originados ou relativos ao espaço público, têm-se um permanente conflito entre a moral e a política. Compreender essas distinções é imperativo para a formação do jornalista, sob pena de o profissional pretender julgar as ações políticos sob o viés dos juízos morais. Este é o fundo da questão que envolve a formação ética do jornalista. Esta, a rigor, não pode se desvencilhar de sua antípoda, a política, como um tipo de comportamento social que concorre com o comportamento moral.
De modo geral, a graduação não dispõe de recursos pedagógicos (currículo, disciplinas, projeto pedagógico) sistematizados para adensar a formação crítica dos egressos, pois as limitações temporais (horário), pessoais (perfis dos docentes) e estruturais (práticas laboratoriais) são reducionistas pelas próprias características do ensino de tempo parcial. A ênfase dos cursos é a formação humanística e técnica, insuficiente também para dotar os egressos de uma capacidade autônoma para um constructo crítico conseqüente na produção jornalística. Mesmo porque, a formação é um processo que se alimenta pela vontade e pelos projetos pessoais.
O desafio se agrava na medida em que o brasileiro despreza a política como campo de transcendência. Entre as causas dessa percepção é o enraizado preconceito contra a política, vista como campo do oportunismo e da corrupção, quando não o campo para a ascensão social por meio dos empregos públicos. Outra causa é a indistinção entre o comportamento político e o comportamento moral. Este, geralmente, é referência predominante para a formulação dos juízos sobre o comportamento político, quando os valores de ambos os comportamentos são incongruentes, incompatíveis.
A oferta do conteúdo ético na formação acadêmica do jornalista precisa dialogar intensamente com a construção de consciências políticas, de modo a se distanciar de um fenômeno comum aos jornais hoje em dia: a influência das corporações de mercado ou do terceiro setor, cujo efeito é o de despolitizar os conteúdos noticiosos.
É Bobbio novamente quem contribui com essa reflexão. Segundo o pensador italiano, um dos sucessos da hegemonia burguesa se deve ao fato de ter conseguido despolitizar as ações e projetos sociais. Hoje, inúmeros são os jornais que adotam o binômio cidadania=social, ou cidadania=responsabilidade social. Reportagens publicadas, nessa perspectiva, confundem ações filantrópicas ou assistencialistas como a cidadania. No modelo liberal/burguês, o Estado não se confunde com sociedade, de modo que esta pode agir livremente sob pena de não construir e dominar o seu projeto hegemônico. É a alienação da política, num quadro de deterioração dos direitos, pois estes não podem ser entendidos e reclamados como fenômeno político, pois a política é alvo de distanciamento. Ao separar sociedade e Estado, o discurso burguês cria um processo de alienação e de deterioração da consciência dos direitos, pois estes só podem ser entendidos em sua origem política. Os projetos de “responsabilidade social” ou de “cidadania” veiculados pela mídia encontram também nos redutos acadêmicos receptividade na medida em que alunos concorrem para elaborar e produzir pautas focadas nesse tema em detrimento de pautas sobre os conflitos políticos.
O modelo hegemônico editorial que privilegia as ações de responsabilidade social e as confunde com a práxis cidadã distorce o sentido político da cidadania, a qual não se pode compreender distante ou separada do Estado, como fenômeno resultante do projeto coletivo da sociedade. E é isso que encontramos nas reportagens publicadas sistematicamente. Jornalistas são os agentes produtores desse discurso. E são os agentes que convivem tanto com o senso ético como com a finalidade política de seus atos profissionais. Kovach & Rosenstiel (2003) observam o resultado de uma ampla pesquisa sobre a ética jornalística norte-americana e concluem que a função maior dos jornalistas é buscar insistentemente a verdade dos fatos para propiciar ao cidadão (leitor, ouvinte, telespectador) a oferta de um conjunto de informações com as quais ele possa se autogovernar e construir o próprio destino político.
A escola, por sua vez, num ambiente de acirrada concorrência mercadológica, lança mão de slogans em campanhas publicitárias de que forma cidadãos com consciência ética. Seja lá o que for a pretensão institucional mercadológica, de fato isso ocorre temerariamente, na medida em que a organização privada (especialmente) sobrevive numa estrutura hierárquica que despreza o debate político, o estimulo à crítica, à auto-crítica e à posição política entre seus pares, docentes, funcionários e alunos.
Evidência desse novo cenário é o desandado e desencantado movimento estudantil. Herança do regime militar, o sentimento de desprezo pela política tomou conta das novas gerações, submetidas que estão às mensagens de conteúdo hedonista e consumista. Há um cordão sanitário na forma de fronteira entre o protegido cotidiano hedonista e consumista e o campo da política, da coletividade pública. A própria escola alimenta o preconceito à política. E como educar para a política se o discurso sobre a moral se encontra isolado também na plasticidade da propaganda consumista?
O constrangimento do sistema educacional sobre o livre-pensar que permite o desenvolvimento de uma crítica à práxis cotidiana no sistema acadêmico atua sobre os docentes, em especial nas escolas privadas. O professor se sente condicionado pela relação trabalho x empresa, o que restringe iniciativas de estimular o debate político sobre a realidade próxima do estudante.
Tanto a formação ética como a política depende de ambientes pedagógicos comprometidos de fato com o processo crítico sobre as ações humanas. E o jornalista precisa dessa formação mais ainda do que o domínio sobre as habilidades técnicas. Estas se constituem em meios, apenas, pelos quais a ética e a política se realizam no discurso jornalístico.


*Jornalista e professor de Ética e Legislação da Imprensa na Puc-Campinas e na Faculdade de Comunicação Social de Hortolândia / SP.
 
Referência bibliográfica

BOBBIO, Norberto.  Teoria Geral da Política: a Filosofia Política e as lições dos clássicos. Rio de Janeiro: Campus, 2000.
KARAN, Francisco. Ética Jornalística e Interesse Público. 1ª ed. São Paulo: Summus Editorial, 2004.
KOVACH, Bill & ROSENSTIEL, Tom. Os elementos do Jornalismo: o que os jornalistas devem saber e o público exigir. São Paulo: Geração Editorial, 2003.
MEDITSCH, E. B. V. O Conhecimento do Jornalismo. 1. ed. Florianópolis: Editora da UFSC, 1992. 100 p.
PINSKY, Jaime & PINSKY, Bassanezi (orgs.). História da Cidadania. São Paulo: Editora Contexto, 2003.
WEBER, M. Ciência e Política: duas vocações. São Paulo: Cultrix, 1993, 9ª Ed.






[1] http://www.saladeprensa.org/art393.htm (capturado em outubro de 2007)
[2] Dupas, Gilberto. O futuro do trabalho. O Estado de São Paulo, p. 02, Ed. 20 de outubro de 2007.
[3] Max Weber classifica três tipos de poderes: o ideológico, o econômico e o político. Poder é um recurso para impor a vontade de alguém para o outro, de modo a obter submissão, obediência, para atingir objetivos que não são compartilhados entre o poderoso e o obediente. Ver Weber, M. Ciência e Política: duas vocações. São Paulo: Cultrix, 1993, 9ª Ed.